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segunda-feira, 4 de junho de 2018

A que nos deve conduzir a contemplação das obras de Deus


De nada aproveita, porém, discutir mais extensamente a que rumo leva e a que escopo se deva aplicar a consideração das obras de Deus, quando esta matéria não só já foi em grande parte considerada, em outro lugar, mas ainda, quanto interessa ao
presente propósito, se pode fazer com poucas palavras. De fato, se quisermos apresentar, como lhe convém à dignidade, quanto refulja na estruturação do mundo a inestimável sabedoria, poder, justiça e bondade de Deus, não estará à altura da magnitude de empresa de tão grande proporção nenhum esplendor nem ornato de linguagem.
Nem há dúvida de que o Senhor nos queira de contínuo ocupados nesta santa meditação, de sorte que, enquanto contemplamos em todas as criaturas, como em espelhos, essas imensuráveis riquezas de sua sabedoria, justiça, bondade, poder, não as relanceemos apenas com olhar furtivo e, por assim dizer, em passageiro vislumbre, mas, ao contrário, demoremo-nos longamente nesta consideração, revolvendo-a na mente e na memória, séria e fielmente, e a evoquemos de momento a momento.
Como, porém, estamos agora voltados para o propósito didático, é-nos próprio abstrair-nos desses tópicos que requerem longas investigações. Portanto, para usar de brevidade, saibam os leitores então terem aprendido, em verdadeira fé, quem é Deus o Criador do céu e da terra, se, em primeiro lugar, seguirem esta regra universal:
que não deixem de atentar, seja por ingrata irreflexão, seja por ingrato esquecimento, para os esplendentes primores que Deus exibe em suas criaturas; e, em segundo lugar, assim aprendam a aplicar essas coisas a si próprios, para que se lhes apeguem profundamente ao coração.
Exemplo da primeira parte dessa regra é quando refletimos de quão grande Artífice foi a tarefa de ordenar e ajustar em tão maravilhoso concerto essa multidão de estrelas que se espalha pelo céu, que não se pode imaginar nada mais belo em aparência; a umas de tal modo inseriu e fixou em suas posições, que não se podem provida e delas afastar; a outras concedeu mais livre curso, todavia em moldes tais que, vagueando, não vão além do espaço assinalado; regulou o movimento de todas de modo que nessa base se meçam os dias e as noites, os meses, os anos e as estações do ano, e além disso reduz a tal proporcionalidade essa desigualdade dos dias que
observamos quotidianamente, que nada encerre de confusão. Assim também, quando atentamos para o poder em sustentar a tão ingente massa, em governar a tão célere convolução da máquina celeste, e outras coisas semelhantes.
Estes bem poucos exemplos, porém, declaram suficientemente o que signifique reconhecer os poderes de Deus na criação do mundo. Por outro lado, se, como disse, nesta consideração me apraza abordar a matéria toda, não haveria fim, quando são tantos os milagres do poder divino, quantas são no mundo as espécies de coisas; aliás, quantas são as próprias coisas, sejam grandes, sejam pequenas.

João Calvino