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domingo, 10 de junho de 2018

Natureza da Providência: não envolve presciência; é atual e eficaz, Universal e Particular


Portanto, que os leitores apreendam de início que não se chama providência aquela através da qual Deus observa passivamente do céu as coisas que se passam no mundo; ao contrário, é aquela pela qual, como que a suster o leme, governa a todos os eventos.
Portanto, ela se estende, por assim dizer, tanto às mãos, quanto aos olhos.
Ora, quando Abraão dizia ao filho: “Deus proverá” (Gn 22.8), nem com isso ele queria apenas afirmar que Deus era presciente de um evento futuro, mas também queria lançar sobre a vontade daquele que costuma dar solução às coisas perplexivas e confusas o cuidado de um fato que lhe era desconhecido. Do quê se segue que a providência está situada no ato. E os que admitem uma mera presciência sem qualquer propósito, nada fazem senão divagar em néscios devaneios.
Nem é tão crasso o erro daqueles que atribuem a Deus o governo das coisas; todavia, como já o disse, um governo confuso e geral, isto é, um governo que, mediante um movimento geral, revolve e impulsiona a máquina do orbe, com todas as suas partes, uma a uma; no entanto, ele não dirige especificamente a ação de cada
criatura. Contudo, nem mesmo tal erro é tolerável. Porque ensinam que esta providência, à qual chamam universal, não impede que alguma criatura se mova de um lugar a outro, nem que o homem faça o que bem exige seu arbítrio. E assim fazem uma divisão entre Deus e o homem: aquele, por seu poder, insufla a este um movimento pelo qual possa agir de conformidade com a natureza nele infundida; este, porém, governa suas ações por determinação da própria vontade. Em suma, querem que o universo, as coisas humanas e os próprios homens sejam governados pelo poder de Deus, porém não por sua determinação.
Deixo de falar dos epicureus, de cuja peste o mundo sempre esteve cheio, que sonham com a um Deus ocioso e inoperante; e deixo de falar de outros que imaginaram Deus, outrora, governando a região intermediária do ar, deixando as partes inferiores entregues a sua sorte. Como se contra tão evidente demência não clamem
suficientemente as próprias criaturas mudas! Ora, pois, o propósito é refutar aquela opinião que tem prevalecido quase universalmente,
a saber, que embora conceda a Deus apenas não sei que cego e ambíguo movimento, destrói o que lhe é primordial, isto é, que por sua incompreensível sabedoria dirige a cada coisa e tudo dispõe para seu fim, arrebatando-lhe, com isso, a ação diretora, faz de Deus o Regente do universo somente em nome, não de fato.
Pergunto, pois, que outra coisa é governar, senão presidir de tal modo que as coisas sobre as quais se preside sejam regidas por um conselho determinado e uma ordem infalível?
Contudo não repudio totalmente o que se diz acerca da providência geral, mas que, por sua vez, me concedam que o universo é regido por Deus, não apenas porque vigia sobre a ordem da natureza por ele estabelecida, como também porque exerce peculiar cuidado de cada uma dentre suas obras. Realmente é verdade que as espécies das coisas são movidas, uma a uma, por instinto secreto da natureza, como que a obedecerem ao eterno mandato de Deus, e que o que Deus uma vez estatuiu emana naturalmente. E aqui pode-se evocar o que Cristo diz, ou, seja, que ele e o Pai estiveram sempre em ação desde o início [Jo 5.17]; e o que Paulo ensina: que
“nele vivemos, nos movemos e existimos” [At 17.28]; e o que também o autor da Epístola aos Hebreus, querendo provar a deidade de Cristo, afirma: todas as coisas são sustentadas por seu poderoso arbítrio [Hb 1.3]. Mas, certos indivíduos erroneamente encobrem e obscurecem a providência especial com este pretexto: é afirmada por testemunhos da Escritura tão seguros e claros, que é surpreendente que alguém ainda possa duvidar dela. De fato, os mesmos que utilizam o pretexto do que ele disse se vêem forçados a corrigir-se, admitindo que muitas coisas são feitas com cuidado especial. Todavia, erroneamente restringem isso a apenas atos particulares.
Portanto, cabe-nos provar que Deus rege de tal modo cada evento individual, e de tal sorte todos eles provêm de seu conselho determinado, que nada acontece por acaso.

João Calvino