Total de visualizações de página

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

O Conhecimento de Deus e o Conhecimento de nós mesmos


SÃO COISAS CORRELATAS E SE INTER-RELACIONAM

1. O CONHECIMENTO DE NÓS MESMOS NOS CONDUZ AO CONHECIMENTO DE DEUS

Quase toda a soma de nosso conhecimento, que de fato se deva julgar como verdadeiro e sólido conhecimento, consta de duas partes: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos. Como, porém, se entrelaçam com muitos elos, não é fácil, entretanto, discernir qual deles precede ao outro, e ao outro origina.
Em primeiro lugar, visto que ninguém pode sequer mirar a si próprio sem imediatamente volver o pensamento à contemplação de Deus, em quem vive e se move  [At 17.28], por isso longe está de obscuro o fato de que os dotes com que somos prodigamente investidos de modo algum provêm de nós mesmos. Mais ainda, nem é nossa própria existência, na verdade, outra coisa senão subsistência no Deus único. Em segundo lugar, por estas mercês que do céu, gota a gota, sobre nós se destilam, somos conduzidos à fonte como por pequeninos regatos. Aliás, já de nossa própria carência melhor se evidencia aquela infinidade de recursos que residem em Deus.

Particularmente, esta desventurada ruína em que nos lançou a defecção do
primeiro homem nos compele a alçar os olhos para o alto, não apenas para que, jejunos e famintos, daí roguemos o que nos falte, mas ainda para que, despertados pelo temor, aprendamos a humildade.
Ora, como no homem se depara um como que mundo de todas as misérias, e
desde que fomos despojados de nosso divino adereço, vergonhosa nudez põe a descoberto imensa massa de torpezas, do senso da própria infelicidade deve necessariamente cada um ser espicaçado para que chegue pelo menos a algum conhecimento de Deus.

E assim na consciência de nossa ignorância, fatuidade, penúria, fraqueza, enfim, de nossa própria depravação e corrupção, reconhecemos que em nenhuma outra parte, senão no Senhor, se situam a verdadeira luz da sabedoria, a sólida virtude, a plena abundância de tudo que é bom, a pureza da justiça, e daí somos por nossos próprios males instigados à consideração das excelências de Deus. Nem podemos aspirar a ele com seriedade antes que tenhamos começado a descontentar-nos de nós mesmos.

Pois quem dos homens há que em si prazerosamente não descanse, quem na verdade assim não descanse, por quanto tempo é a si mesmo desconhecido, isto é, por quanto tempo está contente com seus dotes e ignorante ou esquecido de sua miséria? Conseqüentemente, pelo conhecimento de si mesmo cada um é não apenas aguilhoado a buscar a Deus, mas até como que conduzido pela mão a achá-lo.

2. O CONHECIMENTO DE DEUS NOS LEVA AO CONHECIMENTO DE NÓS MESMOS

Por outro lado, é notório que o homem jamais chega ao puro conhecimento de si mesmo até que haja antes contemplado a face de Deus, e da visão dele desça a examinar-se a si próprio. Ora, sendo-nos o orgulho a todos ingênito, sempre a nós mesmos nos parecemos justos, e íntegros, e sábios, e santos, a menos que, em virtude de provas evidentes, sejamos convencidos de nossa injustiça, indignidade, insipiência e depravação. 
Não somos, porém, assim convencidos, se atentamos apenas para nós mesmos e não também para o Senhor, que é o único parâmetro pelo qual se deve aferir este juízo. Pois, uma vez que somos todos por natureza propensos à hipocrisia, por isso qualquer vã aparência de justiça nos satisfaz amplamente em lugar da real justiça. E porque dentro de nós ou a nosso derredor nada se vê que não seja contaminado de crassa impureza, por todo tempo que confinamos nossa mente aos limites da depravação humana, aquilo que é um pouco menos torpe a nós nos sorri como coisa da mais refinada pureza. Exatamente como se dá com um olho diante do qual nada se põe de outras cores senão o preto: julga-se alvíssimo o que, entretanto, é de brancura um tanto esfumada, ou até mesmo tisnado de certa tonalidade fosca.

Ademais, dos próprios sentidos do corpo nos é possível discernir ainda mais de perto quanto nos enganamos ao avaliarmos os poderes da alma. Ora, se em pleno dia ou baixamos a vista ao solo,ou fitamos as coisas que em torno de nós se patenteiam ao olhar, parecemo-nos dotados de mui poderosa e penetrante acuidade. Quando, porém, alçamos os olhos para o sol e o miramos diretamente, esse poder de visão que sobre a terra se fazia ingente prontamente se suprime e confunde com fulgor tão intenso, de sorte a sermos forçados a confessar que essa nossa habilidade em contemplar as coisas terrenas, quando para o sol se voltou, é mera ofuscação.

Assim também se dá ao estimarmos nossos recursos espirituais.                                    Pois, por tanto tempo quanto não lançamos a vista além da terra, mui fantasiosamente nos lisonjeamos a nós mesmos, de todo satisfeitos com nossa própria justiça, sabedoria e virtude, e nos imaginamos pouco menos que semideuses. Mas, se pelo menos uma vez começamos a elevar o pensamento para Deus e a ponderar quem é ele, e quão completa a perfeição de sua justiça, sabedoria e poder, a cujo parâmetro nos importa conformar-nos, aquilo que antes em nós sorria sob a aparência ilusória de justiça, logo como plena iniqüidade se enxovalhará; aquilo que mirificamente se impunha sob o título de sabedoria exalará como extremada estultícia; aquilo que se mascarava de poder se argüirá ser a mais deplorável fraqueza.
Portanto, longe está de conformar-se à divina pureza o que em nós se afigura
como que absolutamente perfeito.

João Calvino