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quinta-feira, 11 de julho de 2019

Desperta, tu que Dormes


DISCORRENDO sobre estas palavras, pretendo, -com o auxílio de Deus,

 1º — Descrever os adormecidos, a quem as palavras do texto se dirigem;

2º — Corroborar a.exortação — “Desperta, tu que dormes, e levanta-te dentre os mortos”; e

3º — Explanar a promessa feita aos que despertam e levantam-se: “Cristo te alumiará”.

I 1. Primeiramente, tratemos dos adormecidos aí citados. De sono se entende ser o estado natural do homem, mergulhado naquela profunda inconsciência de alma; na qual o pecado de Adão infundiu tudo quanto havia em suas entranhas: a indolência, a preguiça, a incompreensão, a insensibilidade no tocante à sua condição real, estado este que é próprio de todo homem que vem ao mundo, perdurando até que a voz de Deus o desperte.

2. “Aqueles que dormem, dormem de noite”. O estado natural do homem é de profunda obscuridade, lembrando a condição segundo a qual “as trevas cobrem a terra e noite densa envolve o povo”. O pobre pecador ainda não despertado, qualquer que seja a extensão dos conhecimentos que possua acerca de outras coisas, não se conhece a si mesmo: neste sentido “ele nada sabe do que devia saber”. Não sabe que é um espírito decaído, cuja necessidade primacial, no mundo presente, é reerguer-se de sua queda e recuperar a imagem de Deus, segundo a qual fora criado. Não percebe a falta da única coisa necessária, isto é, a mudança interior de alcance universal, aquele “nascer de cima” simbolizado pelo batismo, que é o início da renovação total; aquela santificação de espírito, alma e corpo, “sem a qual ninguém virá a Deus”.

3. Carregado de todas as enfermidades, julga-se, todavia, em perfeita saúde. Encarcerado em prisões de aço e de miséria, protesta estar em liberdade. Ele diz: “Paz, Paz!”, enquanto o diabo, como “um forte homem armado”, está de plena posse de sua alma. Dorme placidamente, descansa, enquanto o inferno se move sob seus pés para lhe vir ao encontro; enquanto o abismo, de onde ninguém jamais regressa, abre suas fauces para o tragar. Arde o fogo em torno de si, e ele não o pressente; queima-o, e apesar de tudo ele nada percebe.

4. Por adormecido entendemos, pois, (e prouvera a Deus que todos nós o compreendêssemos do mesmo modo!) o pecador satisfeito com seus pecados; contente com o permanecer em seu estado de queda, com o viver e morrer sem nunca refletir a imagem de Deus; o que ignora sua enfermidade e o remédio único que o pode curar; o que nunca foi advertido ou que nunca atentou para a voz de Deus que o aconselha a “fugir da ira vindoura”; o que jamais notou que estava exposto ao perigo do fogo do inferno ou que jamais clamou do mais profundo de sua alma: “Que devo eu fazer para me salvar”?

5. Se o que dorme não for exteriormente viciado, seu sono será, habitualmente, o mais profundo de todos: quer seja ele do espírito de Laudicéia, “nem frio, nem quente”, mas um pacífico, racional, inofensivo, prestimoso adepto da religião de seus pais; quer seja zeloso e ortodoxo e, “conforme a mais rigorosa seita de nossa religião”, viva como “um fariseu”, isto é, de acordo com o perfil farisaico da narrativa néotestamentária; quer seja como o que a si mesmo se justifica, trabalhando por estabelecer sua própria justiça como fundamento de sua aceitação por parte de Deus, — profundo lhe decorrerá o sono!

6. Assim é aquele que, “tendo a forma da piedade, nega o poder dela”; e ainda provavelmente a ultraja, onde quer que ela se manifeste, qualificando-a como simples extravagância e pura ilusão. Entretanto, o infeliz enganador de si mesmo dá graças a Deus porque “não é como os demais homens, que são adúlteros, injustos e ladrões”: não, ele não faz mal a ninguém. “Jejua duas vezes por semana”, usa de todos os meios de graça, é assíduo à igreja e aos sacramentos e “paga o dizimo de tudo quanto tem”; faz todo o bem que está em suas mãos fazer; “no tocante à justiça da lei”, ele é “irrepreensível”; nada lhe falta de piedade, mas de poder; nada lhe falta de religião, mas de espírito; nada lhe falta de cristianismo, mas de verdade e vida.

7. Não sabe, entretanto, o cristão desse tipo, que, por mais altamente estimado que possa ser em meio dos homens, é, todavia, abominação à vista de Deus e herdeiro de todos os ais com que o Filho de Deus denunciou ontem, verbera hoje e estigmatizará para sempre os “escribas e fariseus hipócritas?” É ele que “limpa o exterior do copo e do prato”, deixando seu interior cheio de roda imundície. “Uma enfermidade horrível pesa ainda sobre ele, de sorte que seu interior é deplorável”.
Nosso Senhor com propriedade o compara a um “sepulcro branqueado”, que “parece formoso por fora”, mas, não obstante a, boa aparência, “está cheio de ossos e de toda podridão”. Os ossos, a bem dizer, não estão secos; os nervos e as carnes recobrem-nos, e exteriormente os envolve a pele; neles não há, porém, sopro; nada do Espírito do Deus vivo. E, “se alguém não possui o Espírito de Cristo esse tal não é dele”. “Vós sois de Cristo, se é que o Espírito de Deus habita em vós”; mas, se isto não se dá, Deus sabe que estais ainda mortos.

8. Este é outro característico do adormecido de que fala o texto: ele habita o mundo dos mortos, embora não o saiba. Está morto para Deus, “morto em delitos e pecados”. Porque, “ter a mente carnal é estar morto”.
Corno está escrito: “Por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte; assim a morte, passou a todos os homens”, não só a morte temporal, mas também a morte espiritual e eterna. “No dia em que comeres, desse Deus a Adão, tu certamente morrerás”: não corporalmente (a não ser que se leve em conta que ele então se tornou mortal), mas espiritualmente: perderás a vida de tua alma; morreras para Deus; serás separado dele, que é a vida essencial e a felicidade.

9. Deste modo foi primeiro dissolvida a união vital de nossa alma com Deus; de sorte que, “em meio da vida natural, estamos agora em estado de morte espiritual”.
Neste estado permaneceremos até que o Segundo Adão se torne para nós em Espírito vivificante; até que ele levante o morto, morto em pecado, em prazeres, riquezas e honras. Mas, antes que qualquer alma possa viver, o pecador primeiro “ouve” (preste atenção) “a voz do Filho de Deus”: toma-se sensível a seu estado de perdição e recebe a sentença de morte. Reconhece estar “morto, conquanto viva”: morto para Deus e para todas as coisas de Deus, não tendo mais força para praticar as ações de um cristão vivo do que o corpo morto tem-na para cumprir as funções do homem vivo.

10. E ainda mais certo é que o morto em pecados não tem os “sentidos exercitados para discernir espiritualmente o bem e o mal”. “Tendo olhos ele não vê; tendo ouvidos, não ouve”.
Não “prova e vê que o Senhor é benigno”. Ele “jamais viu a Deus”, nem “ouviu sua voz”, nem tocou o Verbo da vida”. Em vão ressoa em torno o nome de Jesus, “como ungüento derramado e todo seu vestuário três calando mirra, aloés e cássia”: a alma que dorme o sono da morte não tem percepção de nenhuma coisa dessa espécie. Seu coração “perdeu o sentimento” e nada compreende desses fatos.

11. Desprovido, assim, de senso espiritual, não retendo o conhecimento espiritual, o homem natural não recebe as coisas do Espírito de Deus; e tão longe está de as aceitar, que aquilo que se discerne espiritualmente lhe soa como loucura. Não contente de ser profundamente ignorante das coisas espirituais, ele nega mesmo a existência delas.
A própria sensibilidade espiritual lhe parece ser a loucura das loucuras. “Como — pergunta ele — podem ser essas coisas? Como pode algum homem saber que está vivo para Deus?” Do mesmo modo que sabes que teu corpo está agora vivo. A fé é a vida da alma; se tu tens esta vida palpitante em ti, não tens necessidade de sinais para evidenciá-la a ti mesmo, pois que a ελεγχοςπνεύματος, aquela divina consciência, testifica de Deus, o que é mais do que dez milhares de testemunhos humanos — e de mais valia que todos eles.

12. Se o Espírito não testifica, no presente, com teu espírito, seres filho de Deus, que Ele te convença, a ti, pobre pecador ainda não despertado, pela demonstração de seu poder, de que tu és filho do diabo! Oh! Se produzissem agora “um rumor e um estremecimento”, e “os ossos se reunissem, achegando-se cada osso a seu osso!” Então, “Vinde dos quatro ventos, ó Sopro! E soprai estes despojos para que revivam!” E não endureçais vossos corações, resistindo ao Santo Espírito, que agora, vem convencer-vos de pecado, “porque não credes no nome do Unigênito Filho de Deus”!

II

1. Assim, “desperta, tu que dormes, e levanta-te dentre os mortos”. Deus agora te chama pela minha boca e ordena que conheças por ti mesmo, tu, espírito decaído, teu verdadeiro estado e a coisa única que te importa sobre a terra. “Que esperas tu, ó adormecido? Levanta-te! Invoca a teu Deus, para que teu Deus atente para ti e não pereças.” Uma tempestade brava se forma por cima de ti — e tu estás assentado nas profundezas da perdição, no abismo dos juízos de Deus! Se queres escapar a esses perigos, arranca-te do meio deles. “Julga-te a ti mesmo e não serás julgado pelo Senhor”.

2. Desperta, desperta! Levanta-te neste momento, para que não aconteça teres de “beber, pela mão do Senhor, a taça de seu furor”. Move-te ao encontro do Senhor, para que o Senhor, tua justiça, te possa salvar! “Levanta-te do pó”. Enfim, que o terremoto da tempestade de Deus te abale. Desperta, e clama com o tremor do carcereiro: “Que devo fazer para ser salvo?” E não descanses nunca até creres no Senhor Jesus com uma fé que é dom da parte dele, pela operação do Espírito.

3. Se a qualquer de vós, mais do que a outro, falo, é a ti, que pensas nada ter com esta exortação, que particularmente me dirijo. “Tenho para ti uma mensagem de Deus”. Em seu nome eu te conjuro a “fugires da ira vindoura”. Vê, alma ímpia, tua imagem no condenado Pedro, assentado na masmorra escura, entre soldados, ligado com duas cadeias, sentinelas postadas em frente à porta, guardando a prisão. A noite vai muito alta, a manhã se aproxima, quando serás levado à execução. E, em tais circunstâncias mortais, tu dormes, dormes profundamente nos braços do diabo, à borda do abismo, nas fauces da perdição eterna!

4. Que o anjo do Senhor desça sobre ti e a luz resplandeça em tua prisão! E possas tu sentir a caricia da mão poderosa erguendo-te a segredar: “Levanta-te depressa, cinge-te, calça tuas sandálias, toma teus vestidos e segue-me”.

5. Desperta, espírito eterno, de teu sonho de felicidade terrena! Não te criou Deus para si mesmo? Logo, não podes encontrar repouso até que nele descanses. Volta, viandante! Voa para tua arca! Este não é o teu lar. Não penses em construir tabernáculos aqui. Não és senão um peregrino sobre a terra, a criatura de um dia, em trânsito para um destino imutável. Apressa-te! A eternidade está próxima. A eternidade depende deste momento— uma eternidade feliz ou uma eternidade de miséria.

6. Em que estado se acha tua alma? Se Deus, enquanto estou falando, ta exigisse, estarias pronto a te encontrares com a morte e com o juízo? Podes permanecer à sua vista, que é a de “olhos demasiadamente puros para verem a iniqüidade?” Estás pronto “a seres participante da herança dos santos em luz?” Combateste “o bom combate e guardaste a fé”? Tomaste posse da única cosa que é necessária? Recobraste a imagem de Deus, em justiça e verdadeira santidade? Despojaste-te do homem velho, para te revestires do novo homem? Estás unido a Cristo?

7. Tens óleo em tua lâmpada, graça no coração? Amas “ao senhor teu Deus de todo teu coração, e de toda tua mente, e de toda tua alma, e de todas as tuas forças?” Há em ti aquela mente que havia também em Cristo Jesus? És na verdade cristão, isto é, uma nova criatura? O que era velho passou e agora se fizeram novas todas as coisas?

8. “És participante da natureza divina?” Não sabes que “Cristo está em ti, a não ser que sejas reprovado?” Não sabes que Deus “habita em ti e tu em Deus, pelo Espírito que ele te concedeu”? Não sabes que “teu corpo é templo do Espírito Santo, que tu tens mediante comunicação da parte de Deus?” Tens o testemunho em ti mesmo — penhor de tua herança? “Recebeste o Espírito Santo” ou te surpreendes com a pergunta, nem sabendo “sequer que haja um Espírito Santo”?

9. Se te ofendes, estejas descansado: tu nem és cristão, nem desejas sê-lo. Até mesmo tuas orações se volvem em pecado, e tens solenemente zombado de Deus neste dia, suplicando a inspiração de seu Espírito Santo, quando nem crês que haja uma tal coisa a ser comunicada!

10. Sim, firmado na autoridade da palavra de Deus e de nossa Igreja, repito a pergunta: “Recebeste o Espírito Santo?” Se não o recebeste, ainda não és cristão, porque — cristão é o homem “ungido com o Espírito Santo e com poder”. Não te fizeste ainda participante da religião pura e imaculada. Sabes que religião é esta? É a participação da natureza divina; a vida de Deus na alma humana; Cristo formado no coração; “Cristo em ti, a esperança da glória”; felicidade e santidade; o céu começando na terra; “o Reino de Deus em ti”, consistindo, não em comida, nem em bebida, nem em coisas materiais, mas em “justiça, e paz, e gozo no Espírito Santo”; um reino eterno estabelecido em tua alma; a “paz de Deus, que excede a toda compreensão”; um “gozo indizível e cheio de glória”.

11. Sabes que “em Jesus Cristo, nem a circuncisão vale corsa alguma, mas a fé que opera por amor”, mas o ser uma nova criatura? Sentes necessidade de mudança interior, de nascimento espiritual, de vida que tome o lugar da morte, — da santidade? Estás profundamente convencido de que sem esta ninguém verá a Deus? Estás trabalhando por alcançá-la, “usando de toda diligência para fazer certa tua vocação e eleição”, “operando tua salvação com temor e tremor”, e “agonizando por entrar pela porta estreita?” Estás ansioso acerca de tua alma? E podes dizer ao Escrutador de corações: “Tu, ó Deus, és o que eu esperava desde muito tempo! Senhor tu sabes todas as coisas! Tu sabes que eu quero amar-te”!

12. Esperas ser salvo; mas que razões tens a dar da esperança que há em ti? Será porque não causaste prejuízo, ou porque fizeste grande cópia do bem, ou porque não és como os demais homens, mas sábio, ou erudito, ou honesto e moralmente bom, estimado do povo e de reputação ilibada? Ai! A soma de tudo isso jamais te levará a Deus. A sua vista isso é tão vão como a própria vaidade. Não conheces a Jesus Cristo, a quem Deus enviou? Não te ensinou ele que “pela graça sois salvos pela fé; e isto não vem de vós: é dom de Deus; não vem das obras, para que nenhum homem se glorie?” Como fundamento de toda tua esperança, não recebeste a palavra fiel, segundo a qual “Jesus Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores?” Não compreendeste o que significa: “Não vim chamar os justos, mas os pecadores ao arrependimento; não fui enviado senão à procura da ovelha perdida?” Estava tu (o que ouve, entenda), perdido, morto, condenado em outro tempo? Não reconheceste teu desamparo, não sentiste tuas misérias? És “pobre de espírito”, clamando por Deus e recusando todo conforto? És o pródigo que “cai em si mesmo”, ficando bem contente de ser daí por diante considerado “fora de si” por aqueles que ainda se alimentam das bolotas que ele deixou? Desejas viver piamente em Cristo Jesus, estando por esta causa sofrendo perseguição? Dizem os homens falsamente toda sorte de mal contra ti, por causa do Filho do Homem?

13. Que, através de todo este interrogatório, ouças a voz que desperta o morto e sinta o martelar da Palavra que despedaça as rochas! “Se ouvirdes sua voz neste dia, que se chama hoje, não endureçais os vossos corações”. Agora, “desperta, tu que dormes” na inconsciência da morte espiritual, para que não durmas no tormento da morte eterna! Reconhece teu estado de perdição e “levanta-te da morte”. Deixa teus velhos companheiros no pecado e na morte. Segue a Jesus, e “deixa que os mortos enterrem os seus mortos”. “Salva-te desta geração perversa”. “Sai do rio deles e separa-te, e não toques as coisas impuras, e o Senhor te recebera”. “Cristo te alumiará”.

III

1. Chego a ponto de explana, finalmente, esta promessa. E quão encorajadora é a consideração de que, quem quer que sejas que obedeças à chamada de Deus, não terás buscado em vão a sua face! Se tu agora “despertas e te levantas da morte”, ele correrá a “te alumiar”. “O Senhor te dará graça e glória”: a luz da sua graça aqui e a luz da sua glória quando receberes a coroa imarcescível. “Tua luz romperá como a aurora e tuas trevas serão como o meio-dia.” “Deus, que faz a luz brilhar em meio das trevas, luzirá em teu coração, para dar a conhecer a glória de Deus na face de Jesus Cristo.” “Neles o temor do Senhor fará levantar-se o Sol da Justiça, trazendo a salvação em suas asas.” Naquele dia a ti se te dirá: “Levanta-te, brilha; porque tua luz vem e a glória do Senhor se levanta sobre ti”. Porque Cristo revelar-se-á em ti: e ele é a verdadeira Luz.

2. Deus, que é luz, dar-se-á a si mesmo a todo pecador que desperte e por ele suspire: serás então um templo do Deus vivo; Cristo “habitará em teu coração pela fé”. “Arraigado e fundado no amor, estarás apto a compreender, com todos os santos, qual seja o comprimento, e largura, e profundidade: e altura do amor de Cristo, amor que excede a toda compreensão”.

3. Vede vossa vocação, irmãos. Somos chamados a ser “habitação de Deus mediante seu Espírito”; e, pelo seu Espírito habitamos em nós, tornamo-nos capazes de ser santos desde agora e participantes da herança dos santos em luz. Como são majestosamente vastas as promessas feitas a nós, e já no presente em nós cumpridas, em nós, os que cremos! Porque pela fé “recebemos, não o espírito do mundo, mas o Espírito de Deus” — a súmula de todas as promessas — “para que possais conhecer as coisas que vos são dadas livremente ppr Deus”.

4. O Espírito de Cristo é o grande dom que, em várias ocasiões e de diversas maneiras, Deus prometeu ao homem e efetivamente o tem comunicado, a partir do tempo da glorificação do mesmo Cristo. Essas promessas, feitas antes aos pais, Deus as cumpre deste modo: “Porei meu Espírito dentro de vós e vos farei andar em meus estatutos”. (Ez 26.27). “Derramarei água sobre o sedento e torrentes sobre o terreno árido: derramarei meu Espírito sobre tua semente e minha bênção sobre tua descendência”. (Is 44.3).

5. Todos vós podeis ser testemunhas vivas destas coisas — da remissão dos pecados e do dom do Espírito Santo: “Se podes crer, todas as coisas são possíveis ao que crê”. “Qual dentre vós é o que teme ao Senhor, e ainda anda em trevas e não tem luz”? Pergunto-te, em nome de Jesus: “Crês que seu braço não se retraiu de todo? Crês que ele ainda é poderoso para salvar, sendo o mesmo ontem, hoje e para sempre? Crês que ele tem poder, sobre a terra, de perdoar pecados”? “Filho, tem bom ânimo; teus pecados são-te perdoados”. Deus, por amor de Cristo, te perdoou. Recebe isto, “não como palavra humana; mas, certamente, como Palavra de Deus, o que na realidade é”, e serás justificado livremente mediante a fé; serás também santificado pela fé que há em Jesus, e sobre ti será aposto o selo divino, em testemunho de que “Deus nos deu a vida eterna, e que esta vida está em seu Filho”.

6. Irmãos, deixai que vos fale livremente e sofrei a palavra desta exortação, embora partindo de um dos últimos na hierarquia da Igreja. Vossa consciência vos testifica, no Santo Espírito, que essas coisas são assim, se é que já provastes que o Senhor é benigno. “Esta é a vida eterna: conhecer o único e verdadeiro Deus e a Jesus Cristo, a quem ele enviou”. Este conhecimento experimental, e só este conhecimento é o verdadeiro cristianismo. Quem recebeu o Espírito Santo é cristão; quem não o recebeu não é cristão. Não é possível recebê-lo e depois disto ainda não o conhecer. “Porque naquele dia (quando ele vier, diz o Senhor), conhecereis que estou em meu Pai, e vós em mim, e eu em vós”. Este é aquele “Espírito de Verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita em vós e estará em vós”. (Jo 14.17).

7. O mundo não pode recebê-lo, mas, ao revés, contendendo e blasfemando, absolutamente rejeita a Promessa do Pai. Mas todo espírito que o não confessa não é de Deus. Sim, “este é o espírito do Anticristo, acerca do qual tendes ouvido que virá ao mundo, e já agora está no mundo”. Quem quer que negue a inspiração do Espírito Santo, ou negue que a comunicação do Espírito de Deus seja o privilégio comum de todos os crentes, a bênção do Evangelho, o dom indizível, a promessa universal, o critério pelo qual se mede o real cristão, — é o Anticristo.

8. De nada lhes aproveita o dizer: “Não negamos a assistência do Espírito de Deus; mas apenas essa inspiração, a recepção do Espírito Santo de maneira sensível. É somente a sensação do Espírito, o ser movido pelo Espírito ou cheio dele, que negamos ter qualquer fundamento em sólida religião”. Mas, somente com o negardes isto, negais toda a Escritura, toda a verdade, toda a promessa e o testemunho de Deus.

9. Nossa querida Igreja nada conhece dessa distinção diabólica, mas, ao contrário, claramente, fala do “sentir o Espírito de Cristo” ; de ser alguém “movido pelo Espírito Santo” ; e conhecer e “sentir que não há outro nome senão o de Jesus,” , pelo qual possamos receber vida e Salvação. Ela a todos nos ensina a “pedir a inspiração do Espírito Santo” ; sim, para que possamos “encher-nos do Espírito Santo” . Além disto, ensina que todo presbítero eleito dentre seus membros “recebe o Espírito Santo pela imposição das mãos”, Assim, negar qualquer dessas verdades é, com efeito, renunciar à Igreja da Inglaterra e a toda Revelação cristã.

10. A “Sabedoria de Deus” sempre foi tida pelos homens como “loucura”. Nada de admirável há, portanto, no fato de o grande mistério do Evangelho estar agora “oculto aos sábios e entendidos”, exatamente como o estivera nos tempos antigos; nada de admirável que o Evangelho seja hoje quase universalmente negado, ridicularizado, desacreditado como simples delírio, sendo estigmatizados com os qualificativos de loucos e fanáticos todos os que ainda ousam confessá-lo. Esta é a “decadência” que deveria vir; a apostasia geral dos homens de todas as condições e categorias, que vemos agora avassalando a terra. “Percorre abaixo e acima as ruas de Jerusalém e vê se achas um homem”, um homem que ame ao Senhor seu Deus de todo seu coração e o sirva com todas as suas forças. Como nossa terra geme, (não olhemos para trás! Debaixo do transbordamento da iniqüidade! Quanta vilania de toda espécie se comete a cada passo e, o que mais é, com impunidade, por aqueles que pecam ostensivamente, gloriando-se de sua ignomínia! Quem pode contar os juramentos, as maldições, as profanações, as blasfêmias; a mentira, a calúnia, a maledicência; as quebras do domingo, a glutonaria, a bebedice, a vingança; a prostituição, os adultérios e várias impurezas; as fraudes, a injustiça, a opressão, a extorsão, que cobrem nossa terra, submergindo-a como num dilúvio?

11. Mesmo entre os que se têm guardado isentos das abominações mais grosseiras, quanta ira e orgulho, quanta preguiça e egoísmo, quanta moleza e efeminação, quanta luxúria e indulgência, quanta cobiça e ambição, quanta sede de louvor, quanto amor ao mundo, quanto receio do homem não lhes jazem no intimo! Ao mesmo tempo, quão pouco há de verdadeira religião! Porque, onde está o que ama a Deus ou ao próximo, na medida do mandamento que nos deu o Senhor? De um lado estão os que nem chegam a ter a forma da piedade; de outro lado estão os que possuem apenas a forma: ali são os sepulcros abertos; aqui, os sepulcros branqueados. De modo que em qualquer ato, onde quer que se forme algum ajuntamento de povo (temo que o público de nossas igrejas não faça exceção!) facilmente se pode perceber que de uma parte estão os Saduceus e de outra os Fariseus: uns dando tão escassa importância à religião, como se não houvesse “ressurreição, nem anjos, nem espírito”; e os outros dela fazendo simples forma de vida, um jogo estúpido de cerimônias externas, sem verdadeira fé, nem amor de Deus, nem gozo no Espírito Santo!

12. Prouvera a Deus que nos excetuássemos, nós, os que nos encontramos neste lugar! “Irmãos, o desejo de meu coração e minha oração a Deus, em vosso beneficio, é que sejais salvos” dessa onda de impiedade, e que suas vagas orgulhosas se possam deter aqui. Entretanto, está, na verdade, acontecendo isto? Deus e nossa própria consciência sabem que esta não é a realidade: Não vos tendes guardado puros. Corruptos também o somos nós e abomináveis — e poucos são os que têm melhor entendimento, poucos os que adoram a Deus em espírito e em verdade. Também somos “uma geração que não aplica o coração retamente, e cujo espírito não se firma solidamente em Deus”. Deus nos qualificou como “o sal da terra”; mas, “se o sal perder seu sabor, para nada mais presta, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens”.

13. E “não visitarei essas coisas, diz o Senhor? Minha alma não tomará vingança de uma nação como esta?” Sim, não sabemos quanto tempo falta para que Ele ordene à espada: “Espada, fere através desta terra!” Deus nos tem dado muito tempo para o arrependimento. Deixa-nos ele por este ano também, avisando-nos, todavia, e despertando-nos por meio do trovão. Seus juízos estão divulgados na terra — e temos toda razão de esperar o mais grave de todos, isto é, que “ele venha rapidamente a nós e remova nosso candeeiro de seu lugar, a não ser que nos arrependamos e façamos nossas primeiras obras”; a não ser que voltemos aos princípios da Reforma, à verdade e simplicidade do Evangelho. Talvez estejamos resistindo ao derradeiro esforço da graça divina para salvar-nos. Talvez estejamos quase a “encher a medida de nossas iniqüidades”, rejeitando o conselho de Deus contra nós mesmos e expulsando seus mensageiros.

14. Ó Deus, “em meio da ira, lembra-te de tuas misericórdias!”Sê glorificado em nossa emenda, e não em nossa perdição! Que “atendamos à correção e àquele que a inflige!” Agora que teus “juízos se acham divulgado-na terra”, que os habitantes do mundo “aprendam a justiça!”.

 15. Meus irmãos é tempo de despertarmos do sono, antes que “soe a grande trombeta do Senhor” — e nossa terra se transforme em campo de sangue. Oh! Que vejamos rapidamente as coisas que nos possam assegurar a paz, antes que elas se ocultem a nossos olhos! “Volta-te para nós, ó bom Deus, e cesse tua ira. Ó Senhor, olha dos céus, considera e visita tua vinha”; e faze-nos conhecer “o tempo de nossa visitação”. “Ajuda-nos, ó Deus de nossa salvação, para glória de teu nome!” Oh! Liberta-nos, e sê misericordioso em face de nossos pecados, por amor de teu nome, e assim não nos afastaremos de ti. Faze-nos viver, e invocaremos o teu nome. Volta-te, Senhor Deus dos Exércitos! Mostra-nos a luz de tua face — e seremos sanados. "Agora, àquele que é capaz de fazer muito mais do que tudo quanto podemos pedir ou pensar, segundo o pode que opera em nós, a Ele seja a glória na igreja por Jesus Cristo, em todos os tempos até a cosumação dos séculos. Amém!"

John Wesley

sábado, 6 de julho de 2019

Quase Cristão


Então, Agrippa se dirigiu a Paulo e disse: Por pouco me persuades a me fazer cristão” (Atos 26:28).

E muitos há que vão assim tão longe! Desde que a religião Cristã está, no mundo, tem havido muitos, de todas as épocas e nações, que foram quase persuadidos a serem cristãos. Mas, visto que não traz proveito algum diante de Deus, ir apenas até aí, é de grande importância considerarmos o que significa ser um cristão completo.

1. Primeiro, está implícito a honestidade pagã. Ninguém, eu suponho, irá fazer alguma pergunta sobre isso; especialmente, porque, por honestidade pagã, eu quero dizer, não apenas o que está recomendado, nos escritos dos seus filósofos, mas aquilo que os pagãos comuns esperam uns dos outros, e muitos deles, atualmente, praticam. Através da honestidade pagã, eles foram ensinados que não deveriam ser injustos; levando embora os bens de seu próximo, tanto roubando como furtando; que não deveriam oprimir o pobre, usando de extorsão, em direção a qualquer um; que não deveriam ludibriar, ou fraudar, o pobre ou o rico, em qualquer que seja o comércio, que tiveram; defraudando de homem algum seu direito; e, se possível, não tendo dívidas para com algum deles.

2. Novamente: Os pagãos comuns tinham consideração com a verdade e com a justiça, mantendo, na abominação, os que estavam em perjuro, e que chamaram a Deus para testemunhar uma mentira; assim como o caluniador do próximo, que falsamente acusou algum homem; atribuindo aos mentirosos voluntariosos, de qualquer espécie, a desgraça da raça humana, e as pestes da sociedade.

3. E , ainda: Existia uma forma de amor e assistência, que eles esperavam uns dos outros, sem preconceito, e que se estenderam, não apenas, àqueles pequenos préstimos de benevolência, que são executados, sem qualquer despesa ou trabalho, mas, igualmente, para alimentar o faminto, se eles tivessem comida de sobra; vestir o desnudo, com suas próprias vestimentas supérfluas; e, em geral, dando, a qualquer que necessitasse, aquilo que eles não necessitaram para si mesmos. Assim sendo, resumidamente, a honestidade pagã veio a ser; a primeira condição que implica em se ser quase um cristão.

4. Uma Segunda coisa implícita, é ter uma forma de santidade; aquela santidade que é prescrita no Evangelho de Cristo; e que tem a aparência de um cristão verdadeiro. Mesmo porque, o quase cristão não faz aquilo que o Evangelho proíbe. Ele não toma o nome de Deus em vão; ele abençoa, e não amaldiçoa; ele não jura, afinal, mas sua comunicação é, sim, sim; não, não. Ele não profana o dia do Senhor, não suporta que ele seja profanado, mesmo por estranhos que estejam em suas reuniões.  Ele não apenas evita todo adultério efetivo, fornicação, e impurezas, mas todas as palavras, olhares, que, direta ou indiretamente, tende a isso; e mais ainda, toda palavra vã, abstendo-se tanto da difamação, quanto da maledicência, fofoca, e de toda “conversa tola e sarcástica”; uma espécie de virtude, nos preceitos moralistas pagãos; resumidamente, de toda a conversa que não é “boa para o uso da edificação” e que, conseqüentemente, “aflige o Espírito Santo de Deus, por meio do qual, nós fomos lacrados para o dia da redenção”.

 5. Ele se abstém de “vinho, em excesso”, de farra e comilança. Ele evita, o quanto pode, de se colocar, em todo tipo de discussão e contenda, continuamente, esforçando-se para viver, pacificamente, com todos os homens. E, se ele sofre algum dano, ele não se vinga, nem paga o mal com o mal. Ele não diz insultos, não é briguento, e nem escarnecedor, seja nas faltas ou nas fraquezas de seu próximo. Ele, de boa-vontade, não erra, machuca, ou aflige qualquer homem; mas, em todas as coisas, age e fala por aquela regra clara: “não faze ao outro, o que não queres que façam a ti”.   

6. E em fazendo o bem, ele não se limita aos préstimos baratos e fáceis da benevolência, mas trabalha e sofre, para o proveito de muitos, para que, por todos meios, ele possa ajudar a alguém. A despeito da luta ou da dor, “o que quer que suas mãos encontrem o que fazer, ele faz, com toda sua força”, não importa, se para amigos ou para inimigos, para o mal ou para o bom. Porque, não sendo “indolente”, nisso, ou em suas “tarefas”, quando ele “tem oportunidade”, ele faz o “bem”; todas as formas de bem, “a todos os homens”, para suas almas, tanto quanto para seus corpos. Ele reprova o mal, instrui o ignorante, fortalece o irresoluto, estimula o bom, e conforta o aflito. Ele trabalha para acordar aqueles que dormem; para conduzir, aqueles que Deus já tem acordado, para a “fonte aberta para o pecado e para a impureza”, para que possam lavar-se, nela, e tornar-se limpos; e para encorajar aqueles que são salvos, através da fé, a adornar o Evangelho de Cristo em todas as coisas.

7. Ele que tem a aparência da santidade, usa também os meios da graça; sim, todos eles, e em todas as oportunidades. Ele, constantemente, freqüenta a casa de Deus; e isto, não da maneira como alguns fazem, que vêm, à presença do Mais Alto, carregado com ouro e vestuário caro, ou, com toda a vaidade ostentosa, no se vestir; bem como, por suas cortesias inoportunas, uns para com os outros, ou pela alegria impertinente de seu comportamento, repudiando todas as pretensões infantis que ele forme, tanto quanto, para o poder da religiosidade deles. Haveria para Deus, ninguém, entre nós, que não tenha caído na mesma condenação? Que tenha entrado, nessa casa, e que, tenha olhado em volta, com todos os sinais da mais apática e descuidada indiferença, embora, algumas vezes, possa parecer usar a oração a Deus, para suas bênçãos, naquilo que esperam; que, durante todo o serviço maravilhoso, estão dormindo, ou reclinados, na postura mais conveniente para isso; ou, quando supõe que Deus esteja dormindo, falando uns com os outros, ou espiando ao redor, como, extremamente, isentos de qualquer ocupação? Nem esses podem ser acusados de aparência de santidade. Não! Aquele que tem mesmo isso se comporta, com seriedade e atenção, em todas as partes do serviço solene. Mais, especialmente, quando ele vem à mesa do Senhor, não é com um comportamento leviano e descuidado, mas com a aparência, gestos, e conduta, que falam nada mais do que “Deus, seja misericordioso comigo, que sou um pecador!”.

8. Para isso, se acrescentarmos o uso constante da oração familiar, por aqueles que são os chefes das famílias, e reservando um tempo, para os endereçamentos privados a Deus, com uma seriedade diária de comportamento; ele que, uniformemente, pratica essa religião exterior, tem a aparência de santidade. Necessitando de apenas uma coisa, com o objetivo de se ser quase cristão, a sinceridade. 

9. Por sinceridade, eu quero dizer, um princípio religioso real, e interno, de onde, essas ações exteriores fluem. E, realmente, se nós não temos isso, nós não temos a honestidade pagã; não, nem tanto dela, como para responder a discussão do poeta epicurista (dado aos prazeres da vida). Mesmo esse pobre patife, em seus intervalos de sobriedade, é capaz de testificar que:
Os homens de bem evitam o pecado de amar a probidade;
Os homens perniciosos, o pecado do medo da punição.
Assim sendo, se algum homem deixa de praticar o mal, para evitar a punição, a perda de seus amigos, seu ganho, ou sua reputação, deveria, igualmente, fazer sempre o bem, usando de todos os meios da graça. Ainda assim, mesmo não praticando o mal e fazendo sempre o bem, não é possível assegurar que esse homem é mesmo quase um cristão, porque, se ele não tiver princípio melhor, em seu coração, ele será apenas um hipócrita!

10. Sinceridade, por conseguinte, está, necessariamente, comprometida, em se ser quase um cristão; o objetivo real de servir a Deus, um desejo ardente de fazer a Sua vontade. Necessariamente, implica, que um homem tem uma idéia sincera de agradar a Deus, em todas as coisas; em todas as suas conversas; em todas as suas ações; em tudo que ele faz; ou deixa sem fazer. Esse objetivo, se algum homem for quase um cristão, segue através de todo o teor de sua vida. Esse é o princípio propulsor, em fazer o bem, e abster-se do mal, e usando as ordenanças de Deus. 

11. Mas aqui, deverá, provavelmente, ser inquirido, “É possível que algum homem possa chegar, tão longe, e, não obstante, ser alguém quase cristão? Quanto mais é necessário para que ele seja um completo cristão?”. Em primeiro lugar, eu respondo que alguém pode ir, até mais longe, e ainda assim, ser apenas um quase cristão.

12. Irmãos, grande é “minha audácia, com respeito a vocês, nesse interesse”. E “perdoem-me esse erro”, se eu declaro minha insensatez no que anuncio publicamente, para por causa de vocês e do Evangelho. Sujeito-me, então, a falar, livremente de mim mesmo, exatamente como de outro homem. Eu estou contente em ser humilhado, para que vocês sejam exaltados, e para ainda mais desprezível para a glória do meu Senhor.  

13. Eu tenho ido assim, tão longe, por muitos anos, como muitos desses lugares podem testificar; usando diligência para evitar todo o mal, e ter uma consciência isenta de ofensa; resgatando o tempo; e, em toda oportunidade, fazendo todo o bem a todos os homens; constantemente e cuidadosamente, usando todos os meios públicos e todos os meios privados da graça; esforçando-me, na busca de uma sinceridade firme de comportamento, todo o tempo, e em todos os lugares; e, Deus é meu testemunho, diante de quem eu permaneço, fazendo tudo isso, com sinceridade; tendo um desígnio real de servir a Deus; um desejo ardente de fazer todas as suas vontades; para agradar a Ele que tem me chamado para “lutar uma boa luta”, e para “assegurar a vida eterna”. Ainda assim, minha própria consciência testemunha, no Espírito Santo, que todo esse tempo, eu tenho sido, a não ser um quase cristão.

Se for inquirido: “O que mais é necessário, além disso, para que se seja um cristão completo?”. Eu repondo:

(1) O amor a Deus. Porque assim diz sua palavra: “Você irá amar o Senhor seu Deus, com todo seu coração, com toda sua alma, com toda sua mente, e com toda sua força”. Tal amor é esse, como que se apoderando de todo o coração; como acolhendo todas as afecções; como preenchendo a capacidade total da alma, e empregando a mais extrema extensão de todas as suas faculdades. Ele que assim ama o Senhor seu Deus, seu espírito, continuamente, “regozija-se em seu Deus Salvador”. Seu deleite está no Senhor; seu Senhor e seu Tudo, a quem “em tudo dá graças. Todo seu desejo está no Senhor, e para a lembrança do seu nome”. Seu coração está sempre clamando: “Quem mais eu tenho no céu, a não ser a ti? E não há ninguém sobre a terra que eu deseje além de ti”. Realmente, o que mais ele deve desejar além de Deus? Não o mundo, ou as coisas do mundo: Porque ele está “crucificado para o mundo, e o mundo crucificado nele”. Ele está crucificado para “o desejo da carne, o desejo do olho, e o orgulho da vida”. Sim, ele está morto para o orgulho de toda a sorte: Porque “o amor não se ensoberbece”; mas “ele que habita no amor, habita em Deus, e Deus nele”, é menos do que nada, para seus próprios olhos.

(2) O amor ao próximo. Para isso diz nosso Senhor, nas seguintes palavras: “deves amar o teu próximo, como a ti mesmo”. Se algum homem perguntar: “Quem é o meu próximo?” Nós respondemos: todos os homens do mundo; todos os filhos Dele que é o Pai de todos os espíritos de toda a carne. Nem nós podemos excluir nossos inimigos, ou os inimigos de Deus e suas próprias almas. Mas todo cristão ama esses também, como a si mesmo. Sim! “Como Cristo nos amou!”. Ele que gostaria de entender, mais completamente, que espécie de amor é esse, podemos considerar a descrição de Paulo, sobre ele: “O amor é paciente e benigno”. “O amor não arde em ciúmes ou inveja, e não se ufana”. “O amor não se ensoberbece”; mas faz aquele que ama, o menor, o servo de todos. “Não se conduz inconvenientemente”; mas torna-se “todas as coisas para todos os homens”. “Não procura o seu interesse”; mas o que é bom dos outros, para que eles possam ser salvos. “Não se exaspera”; ele atira fora a ira. "Não se ressente do mal. Ele não se alegra com a injustiça, mas regozija-se na verdade. Ele protege todas as coisas; acredita em todas as coisas; espera todas as coisas; suporta todas as coisas".

(3) Existe ainda uma coisa mais que pode ser, separadamente, considerada; embora, ela não possa, atualmente, ser separada da precedente, na qual está subtendido ser um cristão completo; e que é o alicerce de todas elas, mesmo da fé. “Todo aquele”, diz o amado discípulo, “que acredita que é nascido de Deus”. “Para tantos quantos o receberam, deu o poder de se tornarem filhos de Deus; até mesmo aqueles que acreditam em seu nome”. E, “Essa é a vitória que supera o mundo, mesmo a nossa fé”. Sim, nosso Senhor declara: “Ele que acredita no Filho, tem a vida eterna; e não é condenado, mas passa, da morte, para a vida”.

(4) Mas que homem algum iluda a sua própria alma. “Deve ser notado, diligentemente, que a fé, a qual não conduz ao arrependimento, ao amor, e todas as boas obras, não é aquela fé viva e justa, mas é a fé morta e diabólica. Porque mesmo os demônios acreditam que Cristo tenha nascido de uma virgem; que ele forjou todas as formas de milagres, declarando a si mesmo, verdadeiramente, Deus; que, por nossa causa, ele sofreu a maioria das dores da morte, para nos redimir da morte eterna; que ele se ergueu, no terceiro dia; que ele ascendeu aos céus; e senta-se, à direita, do Pai, e que, no fim dos tempos, voltará para julgar os vivos e os mortos. Esses artigos de nossa fé, eles acreditam, e, igualmente, em tudo que está escrito no Velho e Novo Testamento. Mas, ainda, apesar de terem toda essa fé, ainda assim, eles não são mais nada, do que demônios. Eles permanecem, ainda, na condição abominável deles, necessitados da verdadeira fé cristã”.

(5) A fé cristã, correta e verdadeira (para usar as palavras de nossa própria igreja), “não é aquela que nos faz acreditar nas Escrituras Sagradas, e nos artigos de nossa fé, como verdadeiros, mas é aquela que, além disso, nos traz a confiança e segurança de sermos salvos da condenação eterna, através de Cristo. Essa é a verdadeira crença e confiança, a qual o homem tem em Deus; a de que, pelos méritos de Cristo, seus pecados foram perdoados, que ele está reconciliado, para o favor de Deus; a respeito de quem, ele segue, com o coração afetuoso, para obedecer a seus mandamentos”.

(6) Agora, quem quer que tenha essa fé, que “purifica o coração (pelo poder de Deus, que habita nele), do orgulho, da ira, do desejo, de toda iniqüidade; de toda impureza da carne e espírito”; e que o preenche, com o amor mais forte que a morte, tanto para com Deus, como para com toda a humanidade; amor que realiza as boas obras de Deus, glorificando, para despender-se e consumir-se por todos os seres humanos, e que suporta, com alegria, não apenas a repreensão de Cristo, que o homem escarneceu, desprezou e odiou, acima de todos os homens; mas tudo quanto a sabedoria de Deus permita à malícia dos homens, ou dos demônios impor; quem quer que tenha essa fé, operando, assim, por amor, não é alguém que é quase, mas alguém que é um cristão completo!

(7) Mas, quais são os testemunhos vivos dessas coisas? Eu imploro a vocês, irmãos, como na presença desse Deus, diante de quem “inferno e destruição estão sem cobertura; quanto mais os corações dos filhos dos homens”; que cada um de vocês possa perguntar a seu próprio coração: “Eu faço parte desse número? Eu tenho praticado justiça, misericórdia, verdade, e mesmo as regras que a honestidade pagã requer? Se for assim, eu tenho o perfil verdadeiro de um cristão? A aparência da santidade? Eu me abstenho do mal; de tudo o que é proibido, nas palavras escritas de Deus? Eu realizo tudo aquilo que está ao alcance de minhas mãos, com todas as minhas forças? Eu seriamente uso as ordenanças de Deus, em todas as oportunidades? E, tudo isso é feito com o desígnio e desejo mais sinceros, para agradar a Deus, em todas as coisas”.

(8) Existem muitos de vocês, conscientes, de que vocês nunca chegaram tão longe; que vocês não têm sido, nem mesmo quase cristãos; que vocês não têm chegado ao modelo da honestidade pagã; pelo menos, não para a aparência da santidade cristã? Muito menos, tem Deus visto sinceridade em vocês; o objetivo real de agradá-lo, em todas as coisas! Vocês nunca pretenderam, a esse tanto, devotar todas as suas palavras, obras, seus trabalhos, estudos, diversões para a glória Dele. Vocês, nem mesmo, designaram ou desejaram que o que quer que vocês façam, seja feito “em nome do Senhor Jesus”, e que, como tal, constitua-se “em um sacrifício espiritual, aceitável para Deus, através de Cristo”. 

(9) Mas, supondo que vocês tenham conseguido isso...  Os bons objetivos e desejos fazem um cristão? De maneira alguma! A menos que eles sejam trazidos para os bons efeitos. “O inferno é assoalhado”, diz alguém, “com boas intenções”. A grande questão de todas, então, ainda permanece. Tem o amor a Deus espalhado-se para fora, dos seus corações? Vocês têm clamado alto: “Meu Deus, e meu Tudo?”. Vocês desejam alguma coisa, a não ser ele? Vocês estão felizes em Deus? Ele é a glória de vocês, e seu deleite, sua coroa de regozijo? E esse mandamento está escrito em seus corações, “Que ele que ama a Deus, deve amar também o seu irmão?” E vocês amam a seu próximo, como a si mesmos? Vocês, então, amam todos os homens, mesmo os inimigos, e os inimigos de Deus, como as suas próprias almas? Como Cristo tem amado vocês? Sim, vocês acreditam que Cristo os amou, e deu a si mesmo por vocês? Vocês têm fé no sangue Dele? Acreditam que o Cordeiro de Deus tirou fora os seus pecados, e os jogou, como uma pedra dentro das profundezas do mar? Que ele tem apagado os manuscritos que havia contra vocês, tirando-os fora do caminho, pregando-nos na sua cruz? Vocês têm, realmente, a redenção através de seu sangue, mesmo a remissão de seus pecados? E seu Espírito tem sido testemunho com o espírito de vocês de que vocês são filhos de Deus? 

(10) Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, e que agora se situa no meio de nós, sabe que, se algum homem morrer, sem essa fé e esse amor, melhor seria para ele nunca ter nascido. Acorda, então, tu que dormes, e clama pelo teu Deus: Chama-o, enquanto Ele ainda pode ser encontrado. Que ele não tenha descanso, até que faça “sua santidade passar diante de ti”; até que proclame em ti o nome do Senhor: “O Senhor; O Senhor Deus, misericordioso e gracioso, longânime, e abundante na santidade e verdade; mantendo misericórdia, por ti; perdoando a iniqüidade, a transgressão e o pecado”. Não deixa homem algum te persuadir, por meio de palavras vãs; a descansar um pouco daquele prêmio do teu grande chamado. Mas clama a ele, dia e noite; àquele que, “enquanto nós estávamos sem forças, morreu pelo descrente; até que tu saibas em quem deves acreditar, e possas dizer: Meu Senhor, e meu Deus!” Lembra-te “sempre de orar, e não desfalece”, até que ergas as tuas mãos, para os céus, e declares a Ele que vive para sempre e sempre, “Senhor, tu que sabes todas as coisas, sabes que eu amo a ti!”.

(11) Que possamos todos assim experimentar o que é ser, não apenas um quase cristão, mas um cristão completo, estando justificados gratuitamente pela Sua graça, através da redenção que está em Jesus; sabendo que nós temos paz com Deus, por meio de Jesus Cristo, regozijando-nos na esperança da glória de Deus; e tendo o amor de Deus, espalhado, por todos os lados, em nossos corações, pelo Espírito Santo, dado a nós!

(Pregado na Igreja de St. Mary, Oxford, diante da Universidade, 25 de Julho de 1741).

John Wesley

A Salvação pela Fé


“Pela graça sois salvos, mediante a fé” (Ef 2,8). 

1. Todas as bênçãos que Deus tem dado ao homem provêm da sua mera graça, generosidade ou favor; favor totalmente imerecido: o homem não tem nenhum direito à menor misericórdia divina. Foi a graça livre que formou o homem do pó da terra e lhe soprou nas suas narinas o fôlego da vida e imprimiu na alma a imagem de Deus e “pôs tudo sob seus pés”. (Gn 2,7; Sl 8,6). 

2. A mesma graça livre nos concede hoje vida, respiração e tudo mais, pois não há nada que somos ou temos ou fazemos que não provenha da mão de Deus. “Todas as nossas obras, tu, oh Deus as fazes por nós” (At 17,25). Assim, elas são tantas outras manifestações de livre misericórdia, e toda justiça encontrada no homem, será também uma dádiva de Deus. 

3. Então, como o pecador fará expiação pelo menor de seus pecados? Com suas próprias obras? Não ainda que estas sejam muitas ou sejam santas, não provêm dele, mas senão de Deus. Na verdade, todas são ímpias e pecaminosas, por si mesmas; portanto, todos carecem de uma nova expiação. Só frutos maus nascem de uma árvore corrupta. Como o coração do homem é totalmente corrupto e abominável, ele “carece da glória de Deus”, daquela gloriosa justiça primitiva expressa na sua alma, segundo a imagem de seu grande Criador. Assim, nada tendo, nem justiça nem obras para reivindicar, sua boca totalmente se cala perante Deus. 

4. Se “os pecadores acharem graça diante de Deus, é graça sobre...” (Jô 1,16). Se Deus se digna ainda a derramar novas bênçãos sobre nós, sim, a maior de todas elas, a salvação; que podemos dizer a essas coisas senão “graças a Deus pelo seu Dom inefável”. E assim é. Nisto “Deus prova seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido para nos salvar, sendo nós ainda pecadores”. “Pela graça, então, sois salvos, mediante a fé”. A graça é a fonte e a fé a condição da salvação. 

Agora, pois para não estarmos privados da graça de Deus, convém inquirir cuidadosamente: 

I— Qual é a fé mediante a qual somos salvos? 

II— Qual é a salvação que é mediante a fé? 

III— Como podemos responder a algumas objeções? 


Qual é a fé mediante a qual somos salvos? 

Primeiramente, não é a mera fé de um pagão. Deus exige que um pagão creia “que Deus existe e que se torna doador dos que diligentemente o buscam” e que ele deve ser buscado, glorificando e louvando a Deus por tudo e por uma consciente prática da virtude moral da justiça, misericórdia e verdade para com seus semelhantes. 

1. O grego ou romano, sim, um cita ou indiano não tinha desculpa se não acreditasse pelo menos nisto: a existência e os atributos de Deus, o estado futuro de recompensa ou punição, e a natureza obrigatória da verdade moral, pois essas coisas se constituem na crença de um pagão. 

2. Nem é, em segundo lugar, a fé de um diabo, embora ela vá muito além da do pagão, Deus. Até aí vai a fé de um diabo. 

3. Em terceiro lugar, a fé por meio de que somos salvos, no sentido que será explicado mais adiante, não é apenas aquela que os apóstolos tinham quando Cristo estava ainda no mundo. Embora crer a ponto de “deixar tudo e segui-lo” e quanto tivessem o poder de operar milagres, “a curar toda a espécie de doenças e enfermidades”, tinham “poder e autoridade sobre todos os demônios” e o que mais foram enviados pelo seu Mestre para “pregar o Reino de Deus”. No entanto, depois de realizadas todas essas proezas, o próprio Senhor deles os chama de “geração incrédula”. Ele lhes diz que “não podiam expelir um demônio por causa da sua incredulidade”. Mais tarde, supondo já terem uma medida da fé, eles lhe pediram: “aumenta a nossa fé”. No entanto, ele lhe diz claramente que não possuíam nada dessa fé, nem fé como a de um grão de mostarda. “Respondeu-lhes o Senhor: se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a esta amoreira: arranca-te e transplanta-te no amor e ela vós obedecerá”. 

4. Qual é, então, a fé mediante a qual somos salvos? Podemos responder, primeiro, de modo geral, é a fé em Cristo; Cristo e Deus. Através de Cristo, são os seus próprios objetos. Nisso se distingue suficiente e absolutamente da fé de pagãos, quer antigos, quer modernos. Ela se distingue plenamente da fé de um diabo por não ser meramente especulativa e racional, um frio e morto assentimento, um elenco de idéias na cabeça; é, antes, uma disposição do coração, pois a Escritura declara: “Com o coração se crê para a justiça” e “se com a tua boca confessares a Jesus como Senhor e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos será salvo”. 

5. Difere daquela fé que os próprios apóstolos tinham quando nosso Senhor estava no mundo e reconhece a necessidade e o mérito de sua morte e o poder de sua ressurreição. Reconhece sua morte como suficiente meio de redimir o ser humano da morte eterna, e sua ressurreição como a restauração de todos nós a vida e mortalidade e isto porque ele “foi entregue por causa das nossas transgressões e ressuscitou por causa da nossa justificação”. 

A fé cristã não é, então, um assentimento a todo o Evangelho de Cristo, mas antes uma plena confiança no sangue de Cristo, uma confiança nos méritos de sua vida, morte e ressurreição, um descansar nele como nossa propiciação e nossa vida, como dado por nós e vivendo em nós. É uma segura confiança que alguém tem em Deus e que, através dos méritos de Cristo, seus pecados estão perdoados, e ele está reconciliado ao favor de Deus e, como conseqüência, uma aproximação dele e um apego a ele, como nossa “sabedoria, justiça, santificação redenção” ou, numa palavra, nossa salvação. 


O segundo ponto a ser considerado é: qual é a salvação que é mediante a fé? 

Primeiramente, qualquer coisa mais que lhe esteja implícito, trata-se de uma salvação presente. É algo atingível, sim, na terra por aqueles que participam dessa fé. Assim, o apóstolo fala aos crentes de Éfeso, e por eles aos crentes de todos os tempos: “sereis (embora isso também seja verdadeiro), mas ele diz, “sois salvos mediante a fé”. 

Sois salvos (para abarcar tudo numa só palavra) do pecado. Esta é a salvação mediante a fé: e aquela grande salvação predita pelo anjo, antes de Deus trazer ao mundo seu primogênito: “Tu o chamarás com o nome de Jesus, pois ele salvará o seu povo dos seus pecados”. Nem aqui, nem em outra parte do Escrito Sagrado, aparece qualquer limitação ou restrição. Todo o seu povo, ou como se diz em outros lugares, “todos o que nele crêem”, ele salvará de todos os seus pecados, do pecado original e atual, do pecado passado e presente, da carne e do espírito. Mediante a fé nele, são salvos tanto da culpa quanto do poder do pecado. 

Primeiro da culpa de todo o pecado passado. Consideramos que “todo o mundo está culpado perante Deus”, ao ponto que, se ele fosse “observar todos as iniqüidades, ninguém subsistiria”. Consideramos que “pela lei vem somente o conhecimento do pecado”, nenhuma libertação advém dela, de forma que “ninguém será justificado diante dele por cumprir as obras da lei, mas agora, se manifestou a justiça de Deus, mediante a fé em Jesus Cristo”. Agora, “são justificados gratuitamente por sua graça, mediante a redenção que há em Jesus Cristo, a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação para manifestar a sua justiça pela remissão dos pecados anteriormente cometidos”. Agora, Cristo tirou “a maldição da lei, fazendo-se ele próprio, maldição em nosso lugar”. Ele tem “cancelado o escrito de dívidas que era contra nós, removendo-o inteiramente, encravando-o na cruz”. Agora, pois já nenhuma condenação há para os que crêem em Cristo Jesus. 

E, salvos da culpa, são salvos do medo. Na verdade, não do temor filial de ofender (a Deus), mas de todo o medo servil, daquele “medo que produz tormento”, do medo da punição, do medo da ira de Deus, que eles não mais encaram como um Senhor severo, mas como Pai benigno. “Não receberam o espírito da escravidão, mas o espírito da adoção, baseado no qual clamam: Aba Pai. O próprio espírito testifica com o seu espírito, que são filhos de Deus”. São salvos do medo, embora não da possibilidade de caírem da graça de Deus e de não alcançarem as grandes e preciosas promessas; são “selados com o Santo Espírito da promessa, o qual é o penhor da sua herança”. Assim, “têm paz com Deus por meio de nosso senhor Jesus Cristo. Regozijam-se na esperança da glória de Deus. E o amor de Deus é derramado no seu coração pelo Espírito Santo que lhes foi outorgado”. Por isso, são “persuadidos” (embora talvez não sempre, nem com a mesma plenitude de persuasão) de que “nem morte, nem vida, nem coisas do presente, nem do porvir, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra criatura os poderá separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso senhor”. 

Ainda mais: mediante essa fé, são salvos do poder do pecado, bem como da culpa dele. Assim, o apóstolo declara: “Sabeis que ele se manifestou para tirar os pecados e nele não existe pecado. Todo aquele que permanece nele não peca”. Também, “filhinhos, não vos deixeis enganar por ninguém. Aquele que pratica o pecado procede do diabo”. “Todo aquele que crê é nascido de Deus” e “todo aquele que é nascido de Deus não peca, pois o que permanece nele é a divina semente; ora esse não pode pecar, porque é nascido de Deus”. Também: “nós sabemos que todo o que nasceu de Deus não peca; o que foi gerado por Deus o guarda e o maligno não o pode atingir”. 

Aquele que, pela fé, nasce de Deus, não peca, (1) por qualquer pecado habitual, pois todo o pecado habitual é pecado dominante, mas o pecado não pode dominar a qualquer um que creia; nem (2) por pecado intencional, pois sua vontade, enquanto ele permanece na fé, está absolutamente contrária a todo pecado e o odeia como veneno mortal; nem (3) por qualquer desejo pecaminoso, porque ele deseja continuamente a santa e perfeita vontade de Deus; portanto, qualquer tendência a um desejo impuro a ele sufoca pela graça de Deus; também (4) ele não peca por fraquezas, quer em ato, palavra ou pensamento, pois suas fraquezas não são apoiadas pela sua vontade; e, sem isso, não são, propriamente, pecados. Assim, “todo aquele que nasceu de Deus não peca” e, embora não possa dizer que não tenha pecado, “ele não peca”. 

Essa é, então, a salvação pela fé, mesmo no mundo presente: salvação do pecado e das suas conseqüências, ambas comumente implícitas na palavra justificação. Isto, tomado no seu sentido mais largo, implica em libertação da culpa e da punição, pela expiação, de Cristo, efetivamente aplicada à alma do pecador que agora crê nele, e em uma libertação de todo o corpo do pecado, por meio de Cristo formado em seu coração. De sorte que aquele assim justificado, ou salvo pela fé, realmente é nascido de novo. Nasceu novamente do Espírito para uma vida nova que “Ele é a nova criatura: as coisas velhas já passaram; eis que fizeram novas”. Como um recém nascido, alegremente recebe, o genuíno leite racional da palavra, cresce por meio dele e prossegue no poder do Senhor, seu Deus, de fé em fé, de graça em graça, até chegar, afinal, “à perfeita varonilidade, à moda da estatura da plenitude de Cristo”. 


A primeira objeção dada a isso é: 

Pregar salvação ou justificação só pela fé é pregar contra a santidade e as boas obras. Podemos dar uma breve resposta: seria certo se nós falássemos, como fazem alguns, de fé separada. Nós, porém, não falamos de uma fé, mas de uma fé que necessariamente 
produz todas as obras e toda a santidade. 


Pode ser útil, porém, examinar essa objeção mais a fundo, especialmente, por não ser nova, mas antes, tão velha como a época de São Paulo, pois, então, perguntou-se: “Anulamos a lei pela fé?”. Respondemos, primeiramente, que todos os que não pregam fé anulam a lei. Fazem-no direta e grosseiramente, por limitações e comentários que corroem todo o espírito do texto, ou indiretamente, por não apontar o único meio pelo qual é possível cumprir a lei. Em segundo lugar, confirmamos a lei, tanto por mostrar a sua plena extensão e sentido espiritual, quanto por chamar a todos para aquele caminho da vida, “a fim de que a justiça da lei seja cumprida neles”. Estes, enquanto confiam somente no sangue de Cristo, usam todas as ordenanças que se estabeleceu; praticam todas as ”boas obras que ele de antemão preparou para que andássemos nelas” e gozam e manifestam todos os sentimentos santos e celestiais, ou seja, o “sentimento que houve em Cristo Jesus”. 

Contudo, a pregação da fé não conduz as pessoas ao orgulho? Respondemos que, acidentalmente, isso pode acontecer. Todo o crente deve ser seriamente advertido pelas palavras do grande apóstolo Paulo: “por causa da sua incredulidade, os primeiros ramos foram quebrados, tu, mas mediante a fé, estás firme. Não te ensoberbas, mas teme. Porque se Deus não poupou os ramos naturais, também não te pouparás. Considerai a bondade e a severidade de Deus! Para os que caíram, a severidade, mas para contigo, a bondade de Deus se nele permaneceres; de outra sorte também tu serás cortado”. Enquanto ela permanece na fé, lembrará as palavras de São Paulo, provendo a resposta a essa própria objeção: “Onde, pois, a jactância? Foi de toda excluída. Por que lei? Das obras? Não, pelo contrário, pela lei da fé”. Se o homem fosse justificado pelas suas obras, ele teria algo de se gloriar, mas não há glória para aquele “que não trabalha”, porém crê naquele que justifica ao ímpio. As palavras que procedem e seguem ao texto tendem na mesma direção: “Mas Deus, sendo rico em misericórdia, mesmo estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo (pela graça sois salvos) para mostrar a suprema riqueza da sua graça, em bondade para conosco, em Cristo Jesus. Porque pela graça sois salvos, mediante a fé, e isso não vem de vós, é Dom de Deus”. De vocês mesmos não vêm nem a sua fé e nem sua salvação: “É Dom de Deus", é livre e imerecida dádiva, a fé mediante a qual são salvos, bem como a salvação, que ele, da sua própria vontade, por mero favor, acrescenta a ela. O fato de vocês crerem é um exemplo de sua graça; que tendo crido são salvos, é outro. “Não de obras para que ninguém se glorie”, porque todas as nossas obras, toda a nossa justiça, que existiam antes de crermos, não mereciam nada de Deus senão a condenação; tão longe estavam de merecer a fé, que, portanto, quando dada, não procede “das obras”. A salvação não vem das obras que fazemos quando cremos, pois é “Deus quem opera em nós”. E, portanto, o fato de ele nos dar galardão pelo que ele próprio opera só exalta a riqueza da sua misericórdia e não deixa a nós coisa alguma de que possamos gloriar. 

No entanto, o falar assim da misericórdia de Deus, salvando ou justificando livremente só pela fé, não encoraja pessoas a pecarem? Sem dúvida, pode fazer isso e o fará: muitos “permanecerão no pecado para que abunde a graça”, mas seu sangue estará sobre sua própria cabeça. A bondade de Deus deveria conduzi-lo ao arrependimento e assim o conduzirá os sinceros de coração. Sabendo que ainda existe com ele perdão, clamarão para que ele apague também seus pecados e pela fé em Jesus. E, se sinceramente clamam e nunca esmorecem; se o procurarem em todos os meios que ele apontou, se recusarem a serem confortados até que ele venha, “ele virá e não tardará”. E ele poderá fazer muito trabalho em curto espaço de tempo. 

Muitos são os exemplos no livro de Atos dos Apóstolos em que Deus produz essa fé nos corações humanos tão rapidamente como um relâmpago que cai do céu. Assim, na mesma hora que Paulo e Silas começaram a pregar, o carcereiro se arrependeu, creu e foi batizado. Como também os foram os três mil, por São Pedro, no dia de Pentecostes. Todos os quais tendo se arrependido e crido à sua pregação. Graças a Deus, hoje ainda existem muitas provas vivas que Deus ainda é “poderoso para salvar”. 

A mesma verdade sobre uma outra ótica, uma objeção contrária é levantada: “Se alguém não pode ser salvo por todos os seus atos, isso o levará ao desespero”. É verdade, isso o levará ao desespero de ser salvo pelas próprias obras, méritos ou justiça. E deve fazê-lo, pois ninguém poderá confiar nos méritos de Cristo, sem que totalmente renuncie os seus próprios. Aquele que “procura estabelecer a sua própria justiça” não pode receber a justiça de Deus. A justiça que é pela fé não lhe pode ser dada enquanto confiar na justiça que vem da lei. 

Essa, dizem, é uma doutrina desoladora. O diabo falou consigo mesmo, isto é, sem verdade nem vergonha, quando ousou sugerir aos homens que assim é. Essa é a única doutrina que conforta, são “cheias de conforto” para todos os pecadores autodestruídos e autocondenados. “Aquele que nele crê não será confundido” e “o mesmo Senhor de todos é rico para com todos os que o invocam”. Eis aí o conforto alto como os céus, mais forte que a morte! Como? Misericórdia para com todos? Para Zaqueu, um ladrão notório? Para Maria Madalena, uma meretriz? Parece-me que ouço alguém dizendo: “Nesse caso, eu, mesmo eu, posso esperar misericórdia!” E você pode mesmo, aflito, a quem ninguém confortou. Deus não rejeitará sua oração. Pelo contrário, já na próxima hora, pode ser que ele diga: “Tenha bom ânimo. Estão perdoados os teus pecados”. Perdoados de tal forma que nunca mais o dominarão. E “o Espírito Santo testificará com o seu espírito que você é filho de Deus”. Boa nova! Boa nova de grande alegria enviada a todo o povo! “Todos vós que tendes sede, vinde às águas, vinde e comprai, sem dinheiro e sem preço”. Não importa de que natureza seja seus pecados, “embora vermelhos como carmesim”, ainda que sejam “mais que os seus cabelos”, “volte-se para o Senhor que se compadecerá de ti e ao nosso Deus porque é rico em perdoar”. 

Quando nenhuma objeção ocorre, então, simplesmente nos dizem que a salvação pela fé não deveria ser pregada como primeira doutrina, ou, pelo menos, não deve ser pregada a todo o mundo. Mas o que diz o Espírito Santo? “Ninguém poderá lançar outro fundamento, além do que foi posto, o qual é Jesus Cristo”. Portanto, o fato que “todo aquele que nele crê será salvo” é, e deve ser, o fundamento de toda nossa pregação. Deverá que ser pregado primeiro. “Está bem, mas não a todos”. A quem, então, não devemos pregar essa doutrina? Aos pobres? Não, pois eles têm um peculiar direito de ter o evangelho pregado a eles. Aos iletrados? Não. Deus revelou essas coisas aos iletrados e ignorantes desde o começo. Aos jovens? De forma alguma. Deixem que estes, de qualquer modo, venham a Cristo e não os impeçam. Aos pecadores? Aos pecadores muito menos. Ele não veio chamar justos e, sim, pecadores ao arrependimento. Então, se vamos excluir alguns, os ricos, os letrados, os de boa fama e os homens de integridade moral. É verdade que estes, freqüentemente demais, excluem a si de ouvir. Ainda assim, devemos falar as palavras de nosso Senhor, porque assim é o propósito da nossa comissão: “ide e pregai o evangelho a toda a criatura”. Se qualquer um torcer o evangelho ou qualquer parte dela para sua própria destruição, terá de “levar o seu próprio fardo”. “Tão certo como vive o Senhor. O que o Senhor nos disser, disso falaremos”. 

Agora, especialmente, falaremos que “pela graça sois salvos, mediante a fé”, porque a afirmação dessa doutrina nunca foi mais oportuna que no presente. Nada pode efetivamente evitar o aumento do engano romanista entre nós. Atacar, um a um, todos os erros daquela Igreja não terá fim. Mas a salvação pela fé corta pela raiz, e todos eles caem de uma vez onde ela é estabelecida. Foi essa doutrina que nossa Igreja corretamente chamou de rocha forte e fundamento da religião cristã que primeiro expulsou o papismo desses reinos e só ela pode mantê-lo fora. Só isso pode controlar aquela imoralidade que inundou a terra como uma enchente. Você pode esvaziar o grande mar, gota a gota? Você pode, então, reformar por advertência contra vícios particulares. Venha, porém, “a justiça de Deus mediante a fé” e assim suas ondas orgulhosas serão detidas. Só isso pode silenciar aqueles “que se gloriam na sua infâmia” e “renegam abertamente o Senhor que os resgatou”. Podem falar tão sublimemente da lei, como aquele que a tem escrita por Deus no coração. Ouvir-lhes falar desse assunto poderia inclinar alguém a pensar que não estão longe do Reino de Deus. Contudo, tire-os da lei para o evangelho; comece com a justiça da fé, com Cristo “o fim da lei de todo o que crê”, e aqueles que momentos antes pareciam ser quase, se não inteiramente cristãos, são revelados como filhos da perdição, tão distantes da vida e da salvação (que Deus tenha misericórdia deles) como o abismo do inferno das alturas do céu. 

Por esta razão, o adversário se enfurece quando a “salvação pela fé” é declarada ao mundo: ele agitou a terra e o inferno para destruir aqueles que primeiro a pregaram. E pela mesma razão, sabendo que só a fé poderia derrubar os fundamentos do seu reino, ele chamou todas as suas forças e empregou todas as suas artes de mentira e calúnia para afugentar aquele campeão do Senhor dos Exércitos, Martinho Lutero, de reavivá-la. Nem devemos nos maravilhar disso, porque, como observa aquele homem de Deus, “como haveria de irar um homem orgulhoso, forte e bem armado a ser parado e anulado por uma pequena criança que o enfrenta com um caniço na mão?” Sabe-se que aquela criancinha certamente iria derrubá-lo e calcá-lo aos pés. Assim, mesmo, Senhor Jesus! Assim o seu poder sempre “se aperfeiçoa na fraqueza!” Prossiga, então, criancinha que crê nele, e “sua destra te ensinará proezas”. Embora seja dependente e fraco como um recém nascido, o homem forte não lhe poderá resistir. Você vai prevalecer sobre ele, subjugá-lo e derrubá-lo e calcá-lo aos pés. Marcharás, sob o grande capitão da sua salvação, “vencendo e para vencer”, até que sejam destruídos todos seus inimigos e “a morte seja tragada pela vitória”. 

Agora, graças a Deus que nos dá a vitória por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo a quem o Pai e o Espírito Santo, seja benção, a glória, a sabedoria, as ações de graça, a honra, o poder e a força para sempre. Amém.


John Wesley