Assim rui
desmantelada essa frívola defesa com que muitos costumam acobertar a própria
superstição. Pois pensam que é bastante nutrir mero zelo pela religião, seja
qual for sua natureza e por mais falsa que seja. Não levam em conta,
porém, que a verdadeira religião deve ser conformada ao arbítrio de Deus como a
uma norma perpétua: que Deus, em verdade, permanece sempre imutável em seu ser;
que ele não é um espectro ou fantasma, que se transmuda ao talante de
cada um. E pode-se ver meridianamente de quão enganosas aparências a
superstição zomba de Deus
enquanto
intenta render-lhe preito aprazível.
Pois,
apegando-se quase exclusivamente àquelas coisas que Deus tem
testificado não serem de seu interesse, a superstição
ou tem com
desdém ou então não rejeita dissimuladamente aquelas que ele prescreve
e ensina que lhe são do agrado.
Portanto, a
seus próprios delírios cultuam e adoram quantos a Deus alçam seus ritos
inventados, pois de modo algum assim ousariam gracejar com Deus, se já antes
não tivessem moldado um Deus congruente com os absurdos de suas ridicularias.
E assim o Apóstolo
sentencia ser ignorância de Deus essa vaga e errônea opinião com respeito à
divindade: “Quando desconhecíeis a Deus”, diz ele, “servíeis aos que por
natureza não eram deuses” [Gl 4.8]. E, em outro lugar [Ef 2.12], ensina que os
efésios haviam vivido sem Deus durante o tempo em que se achavam distanciados
do reto
conhecimento do Deus único. Tampouco vem muito ao caso, pelo menos neste ponto,
se porventura concebes a um só Deus ou a muitos, porque sempre te apartas do
Deus verdadeiro e dele careces quando, deixado ele de parte, nada
te resta senão um ídolo execrável. Portanto, com Lactâncio nos impõe concluir
que nenhuma religião genuína existe, a menos que esteja em harmonia com a
verdade.
João Calvino