Que existe
na mente humana, e na verdade por disposição natural, certo senso da divindade,
consideramos como além de qualquer dúvida. Ora, para que ninguém se refugiasse
no pretexto de ignorância, Deus mesmo infundiu em todos certa noção de sua
divina realidade, da qual, renovando constantemente a lembrança, de quando em
quando instila novas gotas, de sorte que, como todos à uma reconhecem que Deus
existe e é seu Criador, são por seu próprio testemunho condenados, já que não só
não lhe rendem o culto devido, mas ainda não consagram a vida a sua vontade.
Certamente,
se em algum lugar se haja de procurar ignorância de Deus, em nenhuma parte é
mais provável encontrar exemplo disso que entre os povos mais retrógrados e
mais distanciados da civilização humana. E todavia, como o declara aquele
pagão, não há nenhuma nação tão bárbara, nenhum povo tão selvagem, no qual não
esteja profundamente arraigada esta convicção: Deus existe! E mesmo aqueles
que em outros aspectos da vida parecem diferir bem pouco dos seres brutos, ainda
assim retêm sempre certa semente de religião. Tão profundamente penetrou ela
às mentes de todos, que este pressuposto comum se apegou tão tenazmente às
entranhas
de todos! Portanto, como desde o princípio do mundo nenhuma região, nenhuma
cidade, enfim nenhuma casa tenha existido que pudesse prescindir da religião,
há nisso uma tácita confissão de que no coração de todos jaz gravado
o senso da divindade.
Aliás, até
a própria idolatria é ampla evidência desta noção. Pois sabemos de quão
mau grado se humilha o homem para que admire a outras criaturas acima de si mesmos.
Desse modo, quando prefere render culto à madeira e à pedra, antes que seja
considerado como não tendo nenhum deus, claramente se vê que esta impressão
tem uma
força e vigor prodigiosos, visto que de forma alguma pode ser apagada do
entendimento do homem, de modo que é mais fácil que as inclinações naturais se quebrantem, as quais, desta forma, na realidade se quebrantam
quando, de seu arbítrio, o homem desce daquela altivez natural às coisas mais
inferiores para que assim possa adorar a Deus.
João Calvino