Isto posto,
é inteiramente gratuito o que se ouve de alguns, isto é, que a
religião foi engendrada pela sutileza e argúcia de uns poucos, para com esta
artimanha manterem em sujeição o populacho simplório, ao mesmo tempo em que,
entretanto, nem os mesmos que foram os inventores da adoração de Deus para os
outros creriam existir algum Deus!
Sem dúvida
confesso que, a fim de manterem o espírito mais obediente a si, homens astutos
têm inventado muita coisa em matéria de religião, para com isso infundirem
reverência ao poviléu e inculcar-lhe temor. Isso, no entanto, em parte alguma
teriam conseguido não fosse que já antes a mente humana tivesse sido imbuída dessa
firme convicção acerca de Deus, da qual, como de uma semente, emerge a
propensão para a religião.
E por certo
não é de crer-se que tenham carecido totalmente do conhecimento de Deus os
mesmos que, sob pretexto de religião, habilidosamente exploravam aos menos
esclarecidos. Pois, ainda que no passado tenham existido alguns, e hoje eles não
são poucos, que neguem existir Deus, contudo, queiram ou não queiram, de
quando em
quando acode-lhes certo sentimento daquilo que desejam ignorar.
Em parte
alguma se lê de ter existido um desprezo mais incontido ou desenfreado pela
divindade do que em Gaio Calígula. Entretanto, ninguém tremeu mais miseravelmente
sempre que se patenteava alguma manifestação da ira divina. Desse
modo, malgrado seu, fremia de pavor diante de Deus, a quem publicamente
porfiava por desprezar. Isso, aqui e ali, se sobrevem também aos que lhe fazem
páreo; portanto, quem é mais petulante em desprezar a Deus, de fato também, ao
mero ruído de uma folha que cai, desmedidamente se perturba [Lv 26.36].
Donde vem
isso senão da ação vingadora da divina majestade, que tanto mais cruciantemente
lhes espicaça a consciência, à media que dele mais tentam fugir?
É verdade
que volvem-se para todos os esconderijos em que procuram ocultarse da presença
do Senhor, e de novo da memória a apagam, contudo, quer queiram, quer
não queiram, nela sempre se conservam enredilhados. E por
mais que por vezes pareça desvanecer-se por algum momento, no entanto logo
depois surge, e
com novo
ímpeto irrompe, de sorte que, se porventura têm eles alívio dessa
ansiedade da consciência, não será ela muito diferente do sono dos
ébrios ou dos frenéticos, os quais na verdade, mesmo dormindo, não
repousam tranqüilamente, visto que são continuamente acossados por sonhos
terríveis e apavorantes. Portanto, até os próprios ímpios são exemplos de que
vigora sempre na alma de todos os homens alguma noção de Deus.
João Calvino