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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

RELIGIÃO NÃO É INVENCIONICE GRATUITA

Isto posto, é inteiramente gratuito o que se ouve de alguns, isto é, que a religião foi engendrada pela sutileza e argúcia de uns poucos, para com esta artimanha manterem em sujeição o populacho simplório, ao mesmo tempo em que, entretanto, nem os mesmos que foram os inventores da adoração de Deus para os outros creriam existir algum Deus!
Sem dúvida confesso que, a fim de manterem o espírito mais obediente a si, homens astutos têm inventado muita coisa em matéria de religião, para com isso infundirem reverência ao poviléu e inculcar-lhe temor. Isso, no entanto, em parte alguma teriam conseguido não fosse que já antes a mente humana tivesse sido imbuída dessa firme convicção acerca de Deus, da qual, como de uma semente, emerge a propensão para a religião.
E por certo não é de crer-se que tenham carecido totalmente do conhecimento de Deus os mesmos que, sob pretexto de religião, habilidosamente exploravam aos menos esclarecidos. Pois, ainda que no passado tenham existido alguns, e hoje eles não são poucos, que neguem existir Deus, contudo, queiram ou não queiram, de
quando em quando acode-lhes certo sentimento daquilo que desejam ignorar.
Em parte alguma se lê de ter existido um desprezo mais incontido ou desenfreado pela divindade do que em Gaio Calígula. Entretanto, ninguém tremeu mais miseravelmente sempre que se patenteava alguma manifestação da ira divina.                                       Desse modo, malgrado seu, fremia de pavor diante de Deus, a quem publicamente porfiava por desprezar. Isso, aqui e ali, se sobrevem também aos que lhe fazem páreo; portanto, quem é mais petulante em desprezar a Deus, de fato também, ao mero ruído de uma folha que cai, desmedidamente se perturba [Lv 26.36].
Donde vem isso senão da ação vingadora da divina majestade, que tanto mais cruciantemente lhes espicaça a consciência, à media que dele mais tentam fugir?
É verdade que volvem-se para todos os esconderijos em que procuram ocultarse da presença do Senhor, e de novo da memória a apagam, contudo, quer queiram, quer não queiram, nela sempre se conservam enredilhados. E por mais que por vezes pareça desvanecer-se por algum momento, no entanto logo depois surge, e

com novo ímpeto irrompe, de sorte que, se porventura têm eles alívio dessa ansiedade da consciência, não será ela muito diferente do sono dos ébrios ou dos frenéticos, os quais na verdade, mesmo dormindo, não repousam tranqüilamente, visto que são continuamente acossados por sonhos terríveis e apavorantes. Portanto, até os próprios ímpios são exemplos de que vigora sempre na alma de todos os homens alguma noção de Deus.

João Calvino