Temos aqui, e no contexto, um
relato do notável procedimento de José na casa de Potifar, que foi motivo tanto
de sua grande aflição quanto de seu alto progresso e prosperidade na terra do
Egito.
Lemos, no início do capítulo, como
José, após ter sido cruelmente tratado por seus irmãos, e vendido ao Egito como
um escravo, prosperou na casa de Potifar, que o havia comprado. José temia a
Deus, portanto, Deus estava com ele, a ponto de influenciar o coração de seu
senhor, que, ao invés de mantê-lo como um mero escravo, conforme o propósito
original de sua compra, o fez seu mordomo e superintendente de toda a sua casa.
Tudo o que tinha pôs em suas mãos, de tal maneira que somos informados no v. 6:
“Potifar tudo o que tinha confiou às mãos de José, de maneira que, tendo-o
por mordomo, de nada sabia, além do pão com que se alimentava.”
Enquanto José estava nestas
prósperas circunstâncias, encontrou-se em meio a grande tentação na casa de seu
senhor. Lemos que, sendo um rapaz bonito de porte e de aparência, sua senhora
pôs nele os olhos e o desejou, e usou toda sua arte para tentá-lo a cometer
impureza com ela.
Com relação a essa tentação, e ao
procedimento de José nela, muitas coisas são dignas de nota, particularmente:
Podemos observar como foi grande a tentação na qual esteve José. Deve
ser levado em conta que ele estava, naquele momento, em sua juventude, uma época da vida em
que as pessoas estão mais sujeitas a ser vencidas por tentações dessa natureza.
E encontrava-se em um estado de inesperada prosperidade na casa de Potifar, o que tem a
tendência de envaidecer as pessoas, especialmente as jovens, pelo que é comum
que mais facilmente caiam diante das tentações.
Ademais, a superioridade da pessoa que deu ocasião à sua
tentação a tornou ainda maior. Era sua patroa, e ele um servo dela. E também a maneira dela o tentar, pois não apenas se
insinuava para ele, para fazê-lo suspeitar que poderia ser admitido a um
relacionamento proibido com ela, mas diretamente lhe fazia propostas,
manifestando-lhe claramente sua disposição. Assim, não havia aqui algo como uma
suspeita da disposição da parte dela para o encorajar, mas uma manifestação de
seu desejo para atiçá-lo. De fato, ela parecia bastante engajada na matéria. E
não havia apenas seu desejo manifesto de provocá-lo, mas sua autoridade sobre
ele para reforçar a tentação. Era sua patroa, e ele bem podia imaginar que, se
recusasse totalmente se submeter, incorreria no seu desfavor, e ela, sendo a
mulher do seu senhor, tinha poder para trabalhar em seu prejuízo, e tornar sua situação
muito desconfortável na família.
E a tentação foi maior, pois ela
não apenas o tentou uma vez, mas frequentemente, todos os dias (v. 10). Por fim, se tornou mais
violenta com ele. Pegou-o pelas vestes, dizendo: Deita-te comigo.
A postura de José foi muito notável nessas
tentações. Recusou, em absoluto, qualquer comprometimento. Não deu qualquer
resposta que manifestasse que a tentação o houvesse vencido. Menos ainda
hesitou ou deliberou quanto a ela. Não cedeu em nenhum grau, quer ao ato grosseiro que
ela propunha, quer a algo que tendesse
para ele, ou que pudesse de alguma maneira satisfazê-la em suas ímpias
inclinações. E persistiu resoluto e inabalável sob as contínuas solicitações da
mulher: “Falando ela a José todos os dias, e não lhe dando ele ouvidos, para se
deitar com ela e estar com ela.” (v. 10) Ele evitou ao máximo até mesmo estar
onde ela estava. E os motivos e princípios baseados nos quais agiu, e que foram
manifestos pela sua resposta às solicitações da mulher, são notáveis.
Primeiramente, mostra-lhe como
seria injurioso se agisse contra o seu senhor, se aquiescesse a sua proposta:
“Tem-me por mordomo o meu senhor e não sabe do que há em casa, pois tudo o que
tem me passou ele às minhas mãos. Ele não é maior do que eu nesta casa e
nenhuma coisa me vedou, senão a ti, porque és sua mulher.” (Gn 39.8,9). Então,
prossegue para informá-la do que, acima de tudo, o impedia de comprometer-se,
isto é, que seria grande impiedade e pecado contra Deus: “Como, pois, cometeria
eu tamanha maldade e pecaria contra Deus?” Isso ele não faria de forma alguma,
assim como não prejudicaria seu senhor. Mas, o que acima de tudo o influenciava
nessa ocasião era o temor de pecar contra Deus. Por este motivo, persistiu em
sua resolução até o fim.
No texto, temos um relato do seu
comportamento na última e maior tentação da parte dela. Foi uma grande
tentação, uma vez que ocorreu em um momento em que não havia ninguém na casa,
exceto ele e sua patroa (v. 11). Houve uma oportunidade para cometer o fato no
maior segredo. E, nesse momento, parece que ela foi ainda mais violenta que
antes, pois o pegou pelas vestes, apossou-se dele, como se estivesse resoluta
em atingir seu propósito.
Nessas circunstâncias, ele não
apenas a recusou como fugiu dela, como teria feito se fosse alguém disposto a
assassiná-lo. Fugiu como se fosse por sua vida. Ele assegurou-se não apenas de
não se tornar culpado do fato, mas também de, por todos os modos, escapar da
casa dela, onde estaria no caminho de sua tentação. Este comportamento de José
está, sem dúvida, registrado para a instrução de todos nós. Portanto, das
palavras ditas, observarei que é nosso dever não apenas evitar aquelas coisas
que são em si pecaminosas, mas também, até onde for possível, aquelas que levam
e expõem ao pecado.
Assim fez José, não apenas se
recusou a realmente cometer impureza com sua patroa, que o provocara, mas se
recusou a ficar lá, onde pudesse estar no caminho da tentação (v. 10).
Recusou-se a estar com ela e a permanecer ali. E, no texto, lemos que “saiu, fugindo
para fora.” (v. 12) Não ficaria de maneira nenhuma em sua companhia. Não seria
pecado se José permanecesse na casa onde sua patroa estava, mas, nestas
circunstâncias, isso o exporia ao pecado. Ele tinha consciência que tinha um
coração corrupto, que tendia a traí-lo ao pecado; portanto, de maneira nenhuma
ficaria no caminho da tentação, mas apressadamente fugiria, correria do lugar
do perigo. Uma vez que estava exposto ao pecado nessa casa, fugiu dela com
tanta pressa quanto teria se ela estivesse em chamas, ou repleta de inimigos
com espadas afiadas para estocá-lo no coração. Quando ela o tomou pelas vestes,
ele as deixou em suas mãos; preferiu perdê-las a permanecer um só momento lá,
onde estaria em tamanho perigo de perder sua castidade.
Eu disse que as pessoas devem
evitar as coisas que expõem ao pecado até
onde for possível,porque é possível que as pessoas sejam chamadas a se expor à tentação. Quando isso
ocorrer, podem esperar por fortalecimento e proteção divinas na tentação.
Pode ser o dever indispensável de
um homem exercer um ofício ou trabalho acompanhado com uma grande quantidade de
tentação. Assim, ordinariamente um homem não deveria correr para a
tentação de ser perseguido pela causa da verdadeira religião, para que a
tentação não lhe seja dura demais. Mas deve evitá-la, tanto quanto puder. Desse
modo Cristo ordena a seus discípulos: “Quando, porém, vos perseguirem numa
cidade, fugi para outra.” (Mt 10.23)
Contudo, pode ser o caso que um
homem não foi chamado para fugir da perseguição, mas sofrer o risco de tal
provação, confiando em Deus para sustentá-lo nela. Ministros e magistrados
podem ser obrigados a continuar com seu povo em tais circunstâncias, como diz
Neemias: “Homem como eu fugiria?” (Nm 6.11) Da mesma maneira ocorreu com os apóstolos.
Podem até mesmo ser chamados para ir ao meio dela, àqueles lugares onde não
podem sensatamente esperar outra coisa senão encontrar-se com essas tentações.
Assim Paulo subiu a Jerusalém, onde sabia de antemão que “me esperam cadeias e
tribulações.” (At 20.23)
Da mesma forma, em alguns outros
casos, a necessidade do momento pode exigir que as pessoas se comprometam em
alguns negócios que são peculiarmente acompanhados com tentações. Mas quando
isso ocorre estão, na realidade, minimamente expostas ao pecado; pois os mais
seguros são os que estão no caminho do dever: “Quem anda em integridade anda
seguro.” (Pv 10.9) Embora haja inúmeras coisas pelas quais possam ter
extraordinárias tentações nos assuntos em que se empenharem, contudo, se
tiverem uma vocação clara, não é presunção esperar o suporte e a preservação
divina.
Mas expor-se desnecessariamente às
tentações e fazer aquelas coisas que tendem ao pecado é injustificável e
contrário a esse exemplo excelente diante de nós. E que deveríamos evitar não
apenas aquelas coisas que são, em si mesmas, pecaminosas, mas também as coisas
que levam eexpõem ao
pecado, evidencia-se pelos seguintes argumentos.
1. É muito evidente que deveríamos
fazer uso de nossos máximos esforços para evitar o pecado. Ora, isso é inconsistente
com a prática desnecessária daquelas coisas que expõem e levam ao pecado.
Quanto maior é qualquer mal, maior o cuidado e mais diligente o esforço que se
requer para evitá-lo. Nosso maior cuidado é proporcional a nossa
percepção da grandeza e terror dos males. Portanto, o maior dos males requer o
maior e mais elevado cuidado para evitá-lo.
O pecado é um mal infinito,
pois é cometido contra um Ser infinitamente grande e excelente; é, pois, uma
violação de obrigação infinita. Portanto, conquanto seja grande nosso cuidado
para evitar o pecado, não pode ser mais do que proporcional ao mal que evitaremos.
Nosso cuidado e esforço não podem ser infinitos, como é o mal do pecado; mas,
ainda assim, deveria ser até ao limite de nossa força. Deveríamos usar cada
método que tende a evitar o pecado. Isto é evidente para a razão. E não apenas
a ela, mas também é positivamente requerido de nós na palavra de Deus: “Tende
cuidado, porém, de guardar com diligência o mandamento e a lei que Moisés,
servo do SENHOR, vos ordenou: que ameis o SENHOR, vosso Deus, andeis em todos
os seus caminhos, guardeis os seus mandamentos, e vos achegueis a ele, e o
sirvais de todo o vosso coração e de toda a vossa alma.” (Js 22.5) “Guardai,
pois, cuidadosamente, a vossa alma...para que não vos corrompais.” (Dt 4.15,16)
“Guarda-te, não te enlaces com imitá-las, após terem sido destruídas diante de
ti.” (Dt 12.30) “Tende cuidado e guardai-vos de toda e qualquer avareza.” (Lc
12.15) “Aquele, pois, que pensa estar em pé veja que não caia.” (1 Co 10.12)
“Tão somente guarda-te a ti mesmo e guarda bem a tua alma.” (Dt 4.9) Estes e
muitos outros textos semelhantes das Escrituras, claramente requerem de nós a
máxima diligência e cuidado possíveis para evitar o pecado.
Mas, como se pode dizer para alguém
que use a máxima diligência e cuidado possíveis para evitar o pecado, se essa
pessoa voluntariamente faz aquelas coisas que naturalmente expõem e levam ao
pecado? Como se pode dizer a alguém que com o máximo cuidado possível evite um
inimigo, se essa pessoa voluntariamente se coloca no seu caminho? Como se pode
dizer a alguém que use o máximo cuidado possível para preservar a vida de seu
filho, se essa pessoa permite que a criança vá até a beira de precipícios ou
buracos; ou brinque às margens de um grande abismo; ou passeie em uma floresta
assombrada por animais predadores?
2. É evidente que deveríamos evitar
as coisas que expõem e levam ao pecado, pois um senso devido da malignidade do
pecado e um ódio justo dele necessariamente terão este efeito sobre nós, para
fazer-nos assim proceder. Se estivéssemos devidamente sensíveis da natureza maligna
e terrível do pecado teríamos sobre nossas almas enorme horror a ele. Devemos
odiá-lo mais do que a morte, e temê-lo mais do que o próprio diabo, e receá-lo
assim como receamos a condenação. Ora, os homens naturalmente esquivam-se das
coisas que temem; e evitam as coisas que, na sua apreensão, os deixam expostos.
De modo semelhante, uma criança que ficou grandemente horrorizada com a vista
de uma fera selvagem, de modo algum será persuadida a se aventurar em lugares
onde perceba que se colocará em seus caminhos.
Assim como o pecado em sua própria
natureza é infinitamente odioso, também em sua tendência natural é
infinitamente terrível. É a tendência de todo pecado arruinar eternamente a
alma. Todo pecado, por natureza, carrega consigo o inferno! Portanto, todo
pecado deveria ser tratado por nós como trataríamos uma coisa que seja
infinitamente terrível. Se o pecado de alguém, mesmo o menor dos pecados, não
traz necessariamente consigo a ruína eterna, isso se deve tão somente à livre
graça e misericórdia de Deus para conosco, e não à natureza e tendência do
pecado em si.
Mas certamente não deveríamos tomar
menos cuidado em evitar o pecado, ou tudo aquilo que leva a ele, por causa da
liberalidade e grandeza da misericórdia de Deus por nós, pela qual há esperança
de perdão. Isso seria, de fato, um abuso muito ingrato e vil da misericórdia.
Fosse-nos dado a conhecer que, se alguma vez voluntariamente cometêssemos
qualquer ato particular de pecado, seríamos condenados sem qualquer remédio ou
escape, não seríamos extremamente temerosos de cometê-lo? Não seríamos muito
vigilantes e cuidadosos em permanecer a maior distância desse pecado e de
qualquer coisa que pudesse nos expor a ele, ou que tivesse alguma tendência em
atiçar nossas luxúrias, ou nos trair para cometermos esse ato de pecado?
Consideremos, então, que, embora o próximo ato voluntário de pecado conhecido
não necessária e inevitavelmente resulte em condenação certa, contudo
certamente a merece. Por
ele merecemos, de fato, ser rejeitados, sem qualquer remédio ou esperança; e é
apenas devido à livre graça que esse pecado não é certa e irremediavelmente
seguido com tal punição. E seremos culpados de abuso tão vil da misericórdia de
Deus por nós, a ponto de ela nos encorajar a mais ousadamente nos expor ao pecado?
3. É evidente que devemos não
apenas evitar o pecado, mas também as coisas que expõem e levam a ele, pois é
desta maneira que agimos quanto às coisas que pertencem ao nosso interesse
temporal.
Os homens evitam não apenas aquelas
coisas que são o desastre e a ruína de seus interesses temporais, mas também as
coisas que tendem ou expõem a isso. Porque amam suas vidas temporais, não
apenas realmente evitarão o suicídio, mas são bastante cuidadosos em evitar
aquelas coisas que trazem perigo às suas vidas, embora nem sempre saibam se é
certo que possam escapar. São cuidadosos em não atravessar rios e águas
profundas sobre o gelo derretido, embora não saibam com certeza se não cairão e
se afogarão. Não apenas evitarão aquelas coisas que seriam elas mesmas a ruína
de suas propriedades – como pôr fogo em suas casas, e queimá-la totalmente com
suas posses; pegar seu dinheiro e atirá-lo ao mar, etc. – mas cuidadosamente
evitam aquelas coisas pelas quais suas propriedades são expostas. Vigiam-nas;
são cuidadosos em escolher seus parceiros de negócios; são vigilantes que não
sejam logrados em seus negócios, e procuram não se expor a pessoas tratantes e
fraudulentas.
Se alguém estiver doente de uma
enfermidade perigosa, cuida de evitar tudo que tende a agravar a doença; não
apenas aquilo que sabe ser mortal, mas outras coisas que teme lhe possam ser
prejudiciais. Os homens, por este modo, são afeitos a cuidar de seu interesse
temporal. Portanto, se não formos tão cuidadosos em evitar o pecado, como somos
em evitar o prejuízo de nosso interesse temporal, isso evidenciará uma
disposição despreocupada com respeito ao pecado e ao dever; ou que não nos
importamos tanto com o fato de pecarmos contra Deus. A glória de Deus é
certamente de tanta importância e cuidado quanto nosso interesse temporal. É
certo que deveríamos ser tão cuidadosos em não nos expor a pecar contra a
Majestade do céu e terra, quanto os homens são propensos a cuidar de algumas
poucas libras. Na verdade, estas últimas são apenas bagatelas comparadas com a
primeira.
4. Somos afeitos a proceder desse
modo pelos nossos queridos amigos terrenos.
Não somos apenas cuidadosos
daquelas coisas que diretamente ameace a destruição de suas vidas, ou o seu
prejuízo e calamidade. Mas somos cuidados em evitar as coisas que mesmo
remotamente tendam a isso. Somos cuidadosos em prevenir todas as ocasiões que
lhes representem perda; somos vigilantes contra aquilo que tende, de qualquer
forma, a privá-los de seu conforto ou bom nome. E a razão é que eles nos são
muito queridos. Desta forma, os homens são afeitos a ser cuidadosos do bom nome
de seus filhos, e temem a aproximação de qualquer dano a que receiam estejam ou
possam estar expostos. E ficaríamos muito tristes se nossos amigos não fizessem
o mesmo conosco.
Certamente, deveríamos tratar Deus
como um amigo querido. Deveríamos agir com relação a ele como quem lhe tem um
amor sincero e cuidado não fingido. Assim, devemos vigiar e ser cuidadosos
contra todas as ocasiões daquilo que é contrário a sua honra e
glória. Se não for nossa índole e desejo assim o fazer, isso mostrará que,
sejam quais forem nossas pretensões, não somos amigos sinceros de Deus, e não
lhe temos verdadeiro amor. Se alguém nos tratasse desta maneira e não fosse
cuidadoso de nossos interesses, ficaríamos ofendidos se esses tivessem
professado amizade a nós; então, certamente, Deus pode justamente se ofender
que não somos mais cuidadosos de sua glória.
5. Gostaríamos que Deus, em sua
providência para conosco, não ordene aquelas coisas que tendem ao nosso
prejuízo, ou exponha nossos interesses. Portanto, certamente deveríamos evitar
aquelas coisas que levam ao pecado contra ele.
Desejamos e amamos ter a
providência de Deus em relação a nós disposta de tal maneira que nosso bem
estar seja assegurado. Homem algum ama ser exposto, viver na incerteza e em
circunstâncias perigosas. Enquanto assim está, vive desconfortavelmente, pois
vive em medo contínuo. Desejamos que Deus disponha as coisas a nosso respeito de
tal maneira que possamos estar livre do temor do mal, e que mal algum se
aproxime de nossas habitações; isso porque tememos a calamidade. Não amamos a
aparência e aproximação desta, mas amamos que esteja a grande distância de nós.
Desejamos que Deus nos seja como uma muralha de fogo ao nosso redor, para nos
defender; e que nos cerque como as montanhas cercam o vale, para nos guardar de
todo perigo ou inimigo, e que, desse modo, mal algum nos alcance.
Agora, isso nos mostra claramente
que deveríamos, em nossa postura em relação a Deus, manter uma grande distância
do pecado e de tudo o que expõe a ele, assim como desejamos que Deus, em sua
providência conosco, mantenha a calamidade e a miséria a grande distância de
nós, e não ordene que estas coisas exponham nosso bem estar.
6. Visto que devemos orar que não
entremos em tentação, certamente não deveríamos nós mesmos correr para ela.
Esta é uma petição que Cristo nos
orienta a fazer naquela forma de oração que ensinou aos discípulos: “Não nos
deixe cair em tentação.”
Quão inconsistentes seremos com nós mesmos se orarmos a Deus
que não sejamos conduzidos à tentação, e, ao mesmo tempo, não formos cuidadosos
em evita-la, mas nos conduzirmos a ela, fazendo aquelas coisas que levam e
expõem ao pecado? Que autocontradição é para um homem orar a Deus que seja
guardado daquilo que não toma cuidado algum em evitar! Orando que sejamos
guardados da tentação, professamos a Deus que estar em tentação é algo a ser
evitado; mas, ao correr para ela, mostramos que escolhemos o contrário, isto é,
não evitá-la.
7. O apóstolo nos aconselha a
evitar aquelas coisas que são em si mesmas lícitas, mas tendem a levar os
outros ao pecado. Certamente, então, devemos evitar o que nos leva a nós mesmos
ao pecado. O apóstolo aconselha: “Vede, porém, que esta vossa liberdade não
venha, de algum modo, a ser tropeço para os fracos.” (1 Co 8.9) “Tomai o
propósito de não pordes tropeço ou escândalo ao vosso irmão.” (Rm 14.13) “Se,
por causa de comida, o teu irmão se entristece, já não andas segundo o amor
fraternal. Por causa da tua comida, não faças perecer aquele a favor de quem
Cristo morreu.” (Rm 14.15) “Não destruas a obra de Deus por causa da comida.
Todas as coisas, na verdade, são limpas, mas é mau para o homem o comer com
escândalo. É bom não comer carne, nem beber vinho, nem fazer qualquer outra
coisa com que teu irmão venha a tropeçar ou
se ofender ou se enfraquecer.” (Rm 14.20,21) Ora, se esta regra do apóstolo
for conforme a Palavra de Cristo, como devemos supor, ou ao contrário
deveríamos expurgar o que ele diz do cânon da Escritura, então, uma regra
semelhantes obriga mais fortemente naquelas coisas que tendem a nos levar a nós mesmos ao pecado.
8. Há muitos preceitos da Escritura
que direta e positivamente implicam que devemos evitar aquelas coisas que
tendem ao pecado.
É exatamente isso que é ordenado
por Cristo em Mateus 26.41, onde nos orienta a “Vigiar e orar, para que não
entremos em tentação”. Mas, certamente, nos atirarmos à tentação é o oposto de
vigiar contra ela. Somos ordenados a nos abster de toda aparência do mal, isto é, fazer com o pecado
o mesmo que alguém faz com uma coisa cuja visão ou aparência abomine. Portanto,
evitará qualquer coisa que se assemelhe com ela, e não se aproximará nem ficará
a ela exposto.
Novamente, Cristo ordena que
separemos de nós as coisas que são pedras de tropeço, ou ocasiões para o
pecado, por mais queridas que nos sejam. “Se o teu olho direito te faz
tropeçar, arranca-o e lança-o de ti”. (Mt 5.29) “E, se a tua mão direita
te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti”. (Mt 5.30) Pela mão direita que nos
ofende, não quer dizer que ela nos cause dor; mas a palavra no original
significa ser uma pedra de tropeço, isto é, corta-a, se tua mão direita se
provar uma pedra de tropeço, ou ocasião para a queda, isto é, uma ocasião para
o pecado.
As coisas que servem de ocasião
para o pecado são chamadas de pedra de tropeço no Novo Testamento. Cristo nos
diz que devemos evitá-las, por mais queridas que nos sejam, ainda que sejam tão
caras quanto nossa mão ou olho direitos. Se houver qualquer prática que
naturalmente tenda e exponha ao pecado, devemos nos livrar dela, ainda que nos
seja extremamente amável, e estejamos muito relutantes em dispensá-la. Devemos
fazê-los, ainda que seja tão contrário à nossa inclinação, como é cortar nossa
própria mão direita, ou arrancar nosso olho direito, e isso pela dor da
condenação; pois nos é declarado que se não o fizermos, devemos ir com as duas
mãos e os dois olhos para o fogo do inferno.
Também Deus teve grande cuidado em
proibir aos filhos de Israel aquelas coisas que tendiam a levar ao pecado. Por
esta razão, proibiu que casassem com mulheres estrangeiras: “Nem contrairás
matrimônio com os filhos dessas nações; não darás tuas filhas a seus filhos,
nem tomarás suas filhas para teus filhos; pois elas fariam desviar teus filhos
de mim, para que servissem a outros deuses; e a ira do SENHOR se acenderia
contra vós outros e depressa vos destruiria.” (Dt 7.3-4) Por essa razão, foram
ordenados a destruir todas aquelas coisas que as nações de Canaã usaram em sua
idolatria, e se alguém fosse inclinado à idolatria, deveria ser destruído sem
piedade, ainda que fosse o mais querido e próximo dos amigos. Deveriam não
apenas ser entregues, mas apedrejados; sim, eles próprios deveriam cair sobre
eles e leva-los à morte, mesmo que fosse filho ou filha, ou um amigo do peito:
“Se teu irmão, filho de tua mãe, ou teu filho, ou tua filha, ou a mulher do teu
amor, ou teu amigo que amas como à tua alma te incitar em segredo, dizendo:
Vamos e sirvamos a outros deuses, que não conheceste, nem tu, nem teus pais”.
(Dt 3.6)
Ademais, o sábio nos adverte a
evitar aquelas coisas que tendem e expõem ao pecado, especialmente o pecado da
impureza: “Tomará alguém fogo no seio, sem que as suas vestes se incendeiem? Ou
andará alguém sobre brasas, sem que se queimem os seus pés? Assim será com o
que se chegar à mulher do seu próximo; não ficará sem castigo todo aquele que a
tocar”. (Pv 6.27,29) A verdade aqui apresentada é: evite aqueles costumes e
práticas que naturalmente tendem a provocar a luxúria.
E há muitos exemplos na Escritura,
que têm a força de preceito, registrados não apenas por seu valor, mas para
nossa imitação. A conduta de José é um desses, e a do Rei Davi é outro: “Disse
comigo mesmo: guardarei os meus caminhos, para não pecar com a língua; porei
mordaça à minha boca, enquanto estiver na minha presença o ímpio. Emudeci em
silêncio, calei acerca do bem, e a minha dor se agravou.” (Sl 39.1,2) Até mesmo
acerca do bem! Ou seja, estava tão vigilante com suas palavras, e guardado a
tal distância de falar o que pudesse de qualquer modo levá-lo ao pecado, que
evitava em certas circunstâncias, falar o que era em si mesmo lícito; para que
não fosse traído em direção àquilo que fosse pecaminoso.
9. Um senso prudente de nossa
fraqueza e exposição para ceder à tentação nos obriga a evitar aquilo que leva
e expõe ao pecado.
Quem quer que se conheça e esteja
sensível do quão fraco é sabe como seu coração está cheio de corrupção, esse
mesmo que, como combustível, está pronto a pegar fogo e trazer a destruição
sobre si; sabe o quanto há dentro de si que o inclina ao pecado, e como é
incapaz de sustentar-se a si mesmo. Quem está sensível disso, e tem alguma
preocupação com seu dever, acaso não será bastante vigilante contra qualquer
coisa que possa levá-lo e expô-lo ao pecado? Por este motivo, Cristo nos
orienta: “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação”. (Mt 26.41) A razão
é acrescentada: a carne é fraca! Aquele que, confiando em sua própria força,
ousadamente aventura-se no pecado, entrando em tentação, manifesta grande
presunção e uma insensibilidade embrutecida de sua própria fraqueza. “O que
confia no seu próprio coração é insensato.” (Pv 28.26)
Os mais sábios e mais fortes, e
alguns dos mais santos homens no mundo, foram derrubados por essas coisas.
Assim foi com Davi; assim foi com Salomão: suas mulheres perverteram seu
coração. Se pessoas tão eminentes por sua santidade quanto essas foram desse
modo levadas ao pecado, certamente deve servir de aviso para nós. “Aquele que
pensa estar de pé, veja que não caia.”
Fonte:jonathanedwardsselecionados.blogspot.com.br/: