- A comunhão com Deus é um
relacionamento no qual os crentes recebem amor da parte de todas as três
Pessoas da Triunidade e correspondem com amor.
John Owen insistia sempre que a doutrina da Triunidade é o alicerce da fé cristã,
e que, se a mesma cair, tudo mais desaba. A razão de tal insistência era que a
salvação cristã é uma salvação trinitariana, onde as atividades das três
Pessoas divinas, conforme elas desdobram juntas a salvação, refletem seu
relacionamento essencial e eterno na gloriosa vida da Deidade. A primeira
Pessoa, o Pai, é revelado como Aquele que tomou a iniciativa, escolheu um povo
para ser salvo e seu Filho para salvá-los; Deus, o Pai, também planejou um
caminho de salvação coerente com o seu caráter santo. A segunda Pessoa é
revelada como o Filho e como a Palavra em relação ao Pai, refletindo e
incorporando em Si mesmo a natureza e a mente de Deus, vindo do Pai para fazer
a sua vontade, ao morrer a fim de redimir os pecadores. A terceira Pessoa
procede das duas primeiras, como o agente executivo de ambas, transmitindo aos
escolhidos de Deus a salvação que o Filho obteve para eles. Todas essas três
Pessoas mostram-se ativas no cumprimento de um mesmo propósito de amor para com
homens que não merecem ser amados; todas as três concedem dons distintos,
dentre sua riqueza, ao povo escolhido, e todas as três, por isso mesmo, devem
ser distintamente reconhecidas por meio da fé, com a reação favorável da parte
dos crentes. Esse foi o tema de Owen em seu tratado intitulado Of Communion (A Respeito da Comunhão).
Consideremos antes de tudo ao Pai, dizia Owen. Seu
dom especial para nós pode ser descrito como uma atitude e exercício de amor
paternal: "gratuito, imerecido e eterno... Isso o Pai fixa peculiarmente
sobre os santos; isso eles devem observar nEle de forma imediata, para
receberem dEle, e para corresponderem a esse amor, pois nisso Ele se
deleita". Owen salientou que, no Novo Testamento, o amor é destacado como
a característica especial do Pai em seu relacionamento conosco (1 Jo 4.8; 2 Co
13.13; Jo 3.16; Rm 5.5).
Recebemos o amor do Pai por
intermédio da fé; em outras palavras, confiando e reconhecendo que Cristo veio
para nós, não por sua própria iniciativa, mas como um dom oferecido pelo nosso
amoroso Pai celestial.
É verdade que a fé não se prende de
modo imediato ao Pai, mas ao Filho. Este é "o caminho, a verdade e a vida;
ninguém vem ao Pai senão por" Ele (Jo 14.6). Mas isto é o que eu digo:
Quando, por meio e através de Cristo, temos acesso ao Pai, então... vemos o seu
amor, que Ele nos vota de modo peculiar, e então depositamos fé sobre esses
fatos. Portanto, afirmo que a nós cumpre examinar, crer, receber tudo da parte
do Pai; mas os resultados e frutos de tudo isso chegam até nós somente através
de Cristo. Embora não conheçamos a luz senão através dos raios de luz, é por
meio desses raios que vemos o sol, que é a fonte dos raios de luz. Embora
saciemos a sede na água do riacho, é ele que nos faz pensar na sua fonte. Jesus
Cristo, no que toca ao amor do Pai, é apenas o raio de luz, o riacho, onde
verdadeiramente achamos luz e refrigério; e através dEle somos conduzidos à
fonte, o próprio sol do amor eterno. Se ao menos os crentes se exercitassem
nisso, veriam que isso não é apenas um pequeno meio de aprimoramento
espiritual, em seu andar com Deus... A alma, por meio da fé em Cristo, é assim
conduzida... ao seio de Deus, a uma consoladora persuasão, à percepção
espiritual do amor dEle, para ali repousar e descansar...
Como deveríamos reagir diante do amor
do Pai? Por meio do amor recíproco. Ou, no dizer de Owen, "por meio de um
deleite e aquiescência peculiar no Pai, que se revelou de maneira eficaz como
Aquele que ama nossas almas". E, então, Owen passa a analisar esse amor
que devemos ao Pai e que consiste em quatro elementos — descanso, deleite,
reverência e obediência — todos eles em conjunto.
Em seguida, dizia ainda Owen, consideremos o Filho. Seu dom especial
para nós é a graça — o favor gratuito comunicado a nós, junto com todos os
benefícios espirituais que daí fluem. Toda graça acha-se no Filho e é recebida
quando recebemos a Ele.
Não existe homem que não tenha alguma
carência quanto às coisas de Deus, mas Cristo será para ele aquilo que ele
necessita... Está ele morto? Cristo é a vida. Está ele fraco? Cristo é tanto o
poder quanto a sabedoria de Deus. Tem ele sentimento de culpa sobre si? Cristo
é a justiça perfeita... Muitas pobres criaturas sentem suas carências, mas não
sabem onde está o remédio para elas. De fato, seja vida ou luz, seja poder ou
alegria, tudo está em Cristo.
Tudo isso, declarou Owen, estava na
mente de Paulo quando ele falou sobre "a graça do
Senhor Jesus Cristo" (2 Co 13.13), e também na mente de João, quando este escreveu: "Porque todos nós
temos recebido da sua plenitude, e graça sobre graça" (Jo 1.16). Ao expor
o sentido da graça de Cristo, Owen muito frisou o "relacionamento
conjugai" entre Cristo e o seu povo, tendo oferecido uma detalhada exegese
cristológica sobre Cantares 2.1-7 e 5, que examinaremos mais adiante.
A maneira de recebermos o amor de
Cristo é pela fé; ou seja, nesse caso, um consentimento livre e
inclinado a receber, abraçar e submeter-se ao Senhor Jesus, como seu marido,
Senhor e Salvador — a fim de permanecer com Ele, sujeitando a sua alma a Ele,
deixando-se governar por Ele para sempre... Quando a alma consente em aceitar
Cristo segundo as próprias condições dEle, para que Ele a salve à maneira dEle,
e então diz: "Senhor... agora estou disposta a receber-Te e ser salva
segundo teus termos — meramente através da graça; embora eu tenha andado de
acordo com minha própria mente, agora entrego-me a fim de ser guiada pelo
Espírito, pois em Ti tenho justiça e forças, em Ti sou justificada e me
glorio" — então ocorre a comunhão com Cristo... Que os crentes exercitem
abundantemente os seus corações nessas coisas. Essa é a excelente comunhão com
o Filho, Jesus Cristo. Recebamo-Lo em todas as suas excelências, à medida que
Ele revela-Se a nós; tenhamos sempre pensamentos de fé, preferindo-0 acima de
tudo, quando O comparamos a coisas amadas por nós (como por exemplo, o pecado,
o mundo e a justiça própria); consideremos estas coisas como perda e estéreo,
quando comparadas a Ele... Fazendo desse modo, nunca falharemos nessa questão
de um doce refrigério com Ele.
Como devemos corresponder ao afeto
conjugai e à lealdade de Cristo para conosco? Conservando a fidelidade para com
Ele, respondia Owen; ou seja, recusando-nos a confiar em outrem, senão nEle, no
tocante à nossa aceitação diante de Deus; apreciando o seu Santo Espírito, que
nos foi enviado para nosso eterno benefício; mantendo nossa adoração a Ele sem
nenhuma contaminação, de acordo com o padrão bíblico. Isso requer uma submissão
diária e deliberada a Ele, na qualidade de nosso gracioso Senhor. Devemos
regozijar-nos diariamente diante dEle, no conhecimento de sua perfeição como
Aquele que nos salva do pecado; dia a dia devemos levar à cruz os nossos
pecados e fraquezas, a fim de recebermos perdão ("essa é uma obra de todos
os dias; sem ela não sei como pode ser mantida a paz com Deus"); e, a cada
dia, devemos olhar para Cristo, esperando nEle, quanto ao suprimento de seu
Espírito para purificar nossos corações e para operar em nós a santificação. De
acordo com os Puritanos, a santidade não pode ser obtida sem o exercício da fé,
tal como também não pode ser aperfeiçoada sem nosso esforço em combater contra
o pecado. Owen asseverou que os santoscontemplam a Cristo como... o único
despenseiro do Espírito e de toda a graça da santificação... cabe a Ele
aspergir o sangue sobre as almas dos santos; cabe a Ele criar nos santos a
santidade pela qual anelam... Nesse estado, eles olham para Jesus; a fé fixa-se
sobre Ele, na expectativa que Ele lhes dê o Espírito, para todas essas
finalidades e propósitos; mesclando as promessas com a fé e, assim, tornando-os
verdadeiros participantes de toda essa graça. Essa é... a comunhão deles com
Cristo; essa é a vida de fé, no que concerne à graça e à santidade.
Bem-aventurada a alma exercitada nessas coisas.
Finalmente, afirmou Owen, consideremos o Espírito. Ele é chamado de
Consolador, e a consolação — ou seja, a força e o encorajamento do coração,
juntamente com o senso de segurança e com a alegria — é o dom especial que Ele
nos dá. Essa consolação é transmitida em e através do entendimento que Ele nos
dá acerca do amor de Deus em Cristo, assim como de nossa participação na divina
salvação (Jo 14.26,27; 16.14; Rm 5.5; 8.16). O ministério do Espírito, como
nosso Consolador, consiste em trazer-nos à memória as promessas de
Cristo, glorificar a Cristo em nossos corações, derramar sobre nós o amor de
Deus, testificar junto a nós no tocante ao nosso estado e à nossa condição
espiritual, selar-nos para o dia da redenção e ser o penhor de nossa herança,
ungindo-nos com... consolo, confirmando a nossa adoção e estando presente
conosco em nossas súplicas. Eis aqui a sabedoria da fé — descobrir o Consolador
e encontrar-se com Ele em todas essas coisas; não perder a doçura delas, por
jazer nas trevas no que concerne ao Autor delas, não ficar aquém quanto às
atitudes de reciprocidade que são requeridas de nós.
Como devemos corresponder à obra
consoladora do Espírito? Devemos cuidar em não entristecê-Lo por meio da
negligência ou do pecado (Ef 4.30); não abafá-Lo, mediante oposição ou entrave
à sua obra (1 Ts 5.19); não resistir a Ele, por meio da rejeição à sua Palavra
(At 7.51). Antes, devemos continuamente dar graças a Ele, orando a Ele para que
sua paz e bondade continuem. (Owen achava um precedente para tal oração ao
Espírito no texto de Apocalipse 1.4).
De acordo com Owen, esse deve ser o
padrão de nossa comunhão regular com as três Pessoas da Deidade, na meditação,
na oração e em uma vida corretamente ordenada. Convém que nos mantenhamos na
misericórdia e no ministério que cada Pessoa divina tem para conosco, reagindo
adequadamente a elas, com amor e submissão distinta a cada uma. Desse modo,
cumpre-nos manter uma comunhão abrangente com Deus.
Thomas Goodwin propôs um conceito similar, dando menor atenção à precisão verbal, mas
com maior exuberância e calor humano do que aquilo que James Moffat chamou de
"a poça barrenta e escura do raciocínio de Owen". Owen nos mostrou
que o companheirismo com o Deus triúno faz parte do dever cristão. Na citação
abaixo,Goodwin expõe diante de nós essa questão,
como parte do dom divino da certeza de salvação. A respeito de 1 João 1.3 e
João 14.17-23, escreveu Goodwin:
Há uma comunhão e um companheirismo
com todas as pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo, no amor delas, particular e
distintamente... Cristo põe-nos a labutar por um conhecimento distinto e por
uma comunhão com todas as três Pessoas... não descansemos enquanto todas as
três Pessoas não nos manifestarem seu amor... Na segurança... a comunhão e o
diálogo de um crente é... algumas vezes com o Pai, outras com o Filho, e outras
com o Espírito Santo; algumas vezes o seu coração é impelido a considerar o
amor do Pai em escolher, então o amor do Filho em redimir, e, por fim, o amor
do Espírito Santo, que perscruta as coisas profundas de Deus, revelando-as a
nós, compartilhando de todas as nossas dores; e assim um homem passa
distintamente de uma testemunha para a outra, e afirmo que essa é a comunhão
que João queria que tivéssemos... E essa segurança não é proporcionada por meio
de argumentação ou dedução, mediante a qual cheguemos a inferir que se uma
dessas Pessoas me ama, então a outra também me ama; antes, é uma segurança
intuitiva, conforme posso expressá-la; e nunca devemos nos satisfazer enquanto
não a tivermos obtido, e enquanto as três Pessoas não se manifestam em nós, em
um mesmo nível, todas elas residindo em nós, como se estivéssemos sentados
entre elas, ao mesmo tempo em que todas manifestam seu amor para conosco...
essa é a suprema experiência que Cristo nos prometeu nesta vida [em seu último
sermão, João 14].
Owen não se expressou dessa forma.
Mas ele certamente concordaria com essas declarações de Goodwin.
J. I. Packer