Aqui, porém,
se faz patente a execrável ingratidão dos homens que, enquanto encerram dentro
de si nobre oficina com incontáveis obras de Deus, e ao mesmo tempo uma loja
abarrotada de produtos de inestimável abundância, quando deveriam irromper em
seus louvores, com orgulho muito maior contra ele se inflam e intumescem.
Eles têm consciência dos modos tão extraordinários que Deus opera neles;
igualmente, quão ampla variedade de dons possuem de sua liberalidade, e como
lhes foi ensinado seu próprio uso. São obrigados a reconhecer que essas coisas
são sinais da Divindade, queiram ou não queiram. Contudo os abafam em
seu íntimo. Na verdade não é preciso que saíam para fora de si mesmos,
desde que, não arrogando para si próprios o que lhes foi dado dos
céus, não escondam debaixo da terra o que à sua mente reluz para
que vejam a Deus claramente.
Antes, ainda
hoje a terra sustenta muitos espíritos monstruosos que, para apagar o nome
de Deus, não hesitam em desviar do propósito toda a semente da Deidade disseminada
na natureza humana. Pergunto, pois, quão detestável é esta sandice, que o homem
achando a Deus cem vezes em seu próprio corpo e alma, sob este
mesmo
pretexto de excelência, negue que ele existe? Não dirão que se distinguem dos
seres brutos por obra do acaso. Todavia, sobreposto o véu da natureza, a
qual lhes é o artífice de todas as coisas, alijam a Deus. Percebem tão refinado
lavor em cada um de seus membros, desde a boca e os olhos até a ponta dos pés.
Contudo, também aqui no lugar de Deus colocam a natureza.
Mas, em especial, tão lestos movimentos da alma, tão preclaras faculdades, tão
raros dotes, pressupõem uma Deidade que não permite facilmente ser obscurecida,
salvo se os epicureus, como
os
ciclopes, dessa altura movessem mais insolentemente guerra contra Deus.
Por isso,
para governar um vermezinho de cinco pés de estatura serão
indispensáveis todos os tesouros da celeste sabedoria? E desta prerrogativa carecerá
a totalidade do universo? Em primeiro plano, reconhecer algo orgânico na alma
que lhe corresponda a cada uma das partes, afinal em nada contribui para
toldar a glória de
Deus, pois,
ao contrário, a ilumina!
Que
responda Epicuro, dizendo que o concurso de átomos, a cozinhar o que se come e
bebe, o digere, parte em resíduos, parte em sangue, e de tal modo opera,
que cada membro tenha tão admirável proficiência para realizar sua função,
como se tantas almas quantos membros regessem de comum acordo o corpo a um só
corpo?
João
Calvino