Lembremo-nos,
portanto, sempre que cada um de nós atenta à sua própria natureza,
de que há um Deus, que de tal modo governa a todas as naturezas, que quer que volvamos
para ele os olhos; que quer que para ele dirijamos nossa fé; que quer
que o adoremos e o invoquemos como nosso Senhor, porquanto nada há mais
contrário
do que
desfrutar de tão excelentes dádivas, as quais em nosso íntimo comprovam a Deidade,
e negligenciarmos o Autor que no-las prodigaliza à mera súplica.
Quanto ao seu
poder, de quão cristalinos exemplos sua consideração nos arrebata! Salvo se,
porventura, nos possa ser desconhecido de quanto poder se faz necessário para, só
por sua palavra, sustentar esta infinita massa de céu e terra; por seu
simples
arbítrio, ora a abalar o céu com o fragor dos trovões, abrasar de raios tudo quanto
lhe apraza, riscar o ar com relâmpagos; ora a conturbá-lo com variadas
for mas de tempestades, e então de pronto, a seu bel-prazer, num momento
serená-lo; o mar, que parece, com sua elevação, ameaçar a terra com constante
devastação, como que forçá-lo a manter-se suspenso no ar; e ora, mercê
do tumultuoso ímpeto dos ventos, em horrenda forma excitar, ora, acalmadas as
ondas, torná-lo plácido novamente.
Aqui os
louvores pertencem ao poder de Deus que a cada passo ocorrem dos testemunhos da
própria natureza; de modo especial, na verdade, no livro de Jó e em Isaías,
os quais intencionalmente por ora deixo de considerar, porquanto acharão lugar
mais apropriado em outra parte onde, à base das Escrituras, discorrerei acerca
da criação
do mundo. No presente, tive apenas em mira afirmar que esta maneira de buscar a
Deus é comum a estranhos e a membros da família: seguem os delineamentos que,
em cima e em baixo, lhe desenham viva imagem.
Seu próprio
poder já nos conduz a cogitar sua eternidade, visto que tem necessariamente de
ser eterno e ter de si próprio o princípio donde todas as coisas derivam
a origem.
Ademais, se
porventura se busca a causa, em virtude da qual não só foi ele uma
vez levado a criar todas as coisas, mas ainda é agora movido a preservá-las,
só em sua bondade acharemos estar sua causa. E, afinal, mesmo que seja esta a causa
única, contudo mais do que suficiente deve ser para nos atrair ao seu amor,
quando
nenhuma
criatura há, como o assinala o Profeta [Sl 145.9], em quem sua
misericórdia não lhe seja derramada.
João Calvino