A menos que
esteja presente esta certeza, não apenas mais alta, mas até mais forte que todo
e qualquer juízo humano, em vão se fortificará a autoridade da Escritura por
meio de argumentos, ou se estabelecerá em função do consenso da Igreja, ou se confirmará
à base de outros recursos, porque, salvo se for lançado este fundamento, essa
autoridade permanece sempre duvidosa. De igual modo, em contrapartida, quando,
devotamente e consoante a dignidade de que ela se reveste, uma vez a
temos abraçado como separada da sorte comum das coisas, esses
elementos que até
então não
assumiam relevância para infundir-nos e fixar-nos na mente sua sólida credibilidade,
são agora subsídios mui apropriados.
Pois é
certamente maravilhoso quanto de confirmação recebe essa consideração quando,
com diligência mais intensa, ponderamos quão bem ordenada e disposta aqui se
estampa a dispensação da sabedoria divina, quão celeste em todos os aspectos, e
sua doutrina nada tendo de terreno, quão esplêndida a harmonia de todas as
partes
entre si, e do mesmo modo os demais elementos que se conjugam para
conferir grandiosidade aos escritos. Então, na verdade, ainda mais solidamente
nosso coração se solidifica, quando refletimos que somos arrebatados de
admiração, mais
pela
dignidade do conteúdo que pela graça da linguagem.
Ora, isso
não se deu sem a exímia providência de Deus, ou, seja, que os sublimes
mistérios do reino celeste fossem, em larga medida, transmitidos em termos de
linguagem singela e sem realce,
para que,
se fossem eles adereçados de eloqüência mais esplendorosa, os ímpios não
alegassem cavilosamente que aqui impera apenas força desse gênero. Ora, quando
essa simplicidade não burilada e quase rústica provoca maior reverência
de si que
qualquer eloqüência de oradores retóricos, como há de julgar-se, senão que a
pujança da verdade da Sagrada Escritura se manifesta de forma tão sobranceira,
que necessidade nenhuma há do artifício das palavras? Portanto, o Apóstolo
argúi, não sem razão, que a fé dos coríntios estava fundamentada no poder de
Deus, não na sabedoria humana, porque por entre eles sua pregação se tornara recomendável
não em virtude de palavras persuasivas do saber humano, mas em demonstração do
Espírito e de poder, porque a verdade se dirime de toda dúvida quando,
não se apoiando em suportes alheios, por si só ela própria é suficiente
para
suster-se.
Quão
peculiar, porém, é esse poder à Escritura, transparece claramente disto: que
dos escritos humanos, por maior que seja a arte com que são burilados, nenhum sequer
nos consegue impressionar de igual modo. Basta ler a Demóstenes ou a Cícero;
a Platão ou
a Aristóteles, ou a quaisquer outros desse plantel: em grau admirável, reconheço-o,
são atraentes, deleitosos, comoventes, arrebatadores. Contudo, se te
transportares dali para esta sagrada leitura, queiras ou não, tão vividamente
te afetará, a tal ponto te penetrará o coração, de tal modo se te fixará na
medula, que,
ante a
força de tal emoção, aquela impressividade dos retóricos e filósofos quase que
se desvanece totalmente, de sorte que é fácil perceber que as Sagradas
Escrituras, que em tão ampla escala superam a todos os dotes e graças da
indústria humana, respiram algo de divino.
As Institutas de João Calvino