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domingo, 4 de março de 2018

Apostasia


Quanto, porém, ao que sentencia Davi [Sl 14.1; 53.1]: que os ímpios e insanos sentem no coração que Deus não existe, restringe-se, em primeiro plano, como o veremos de novo pouco mais adiante, àqueles que, sufocada a luz da natureza, deliberadamente
a si mesmos se fazem estúpidos. Assim vemos que muitos, após se
tornarem empedernidos pela insolência e constância em pecar, repelem furiosamente a toda lembrança de Deus, a qual, no entanto, lhes é espontaneamente sugerida no íntimo pelo próprio senso natural.

Ora, para que sua sandice se torne mais abominável, Davi os apresenta como a negarem terminantemente que Deus existe. Não que o privem de sua essência, mas que, despojando-o de seu juízo e providência, o enclausuram ocioso no céu. Ora, como nada é menos próprio de Deus que, posto de parte, permitir à sorte o governo do mundo, e fechar os olhos às impiedades dos homens, para que se entreguem impunemente a todos os desregramentos; qualquer um que, eliminado o temor do julgamento celeste, cede despreocupado à prática do que lhe vem ao talante, está a
negar que Deus existe.

E esta é a justa punição de Deus: cobre-lhes de gordura o coração, de sorte que os ímpios, depois de fecharem os olhos, vendo, não vêem [Mt 13.14, 15; Is 6.9, 10; Sl 17.10]. E Davi é o melhor intérprete de sua afirmação, em outro lugar [Sl 36.1; 10.11], onde diz que não há temor de Deus diante dos olhos dos ímpios; e, de igual
modo, porque se persuadem de que Deus não o vê, orgulhosamente se aplaudem em seus desmandos.

Portanto, embora sejam compelidos a reconhecer um Deus, contudo esvaziam sua glória, tentando privá-lo do poder, pois, conforme Paulo o atesta [2Tm 2.13], assim como Deus não pode negar a si próprio, de modo que permanece perpetuamente imutável em seu ser, assim também estes, ao forjarem um ídolo inerte e inútil,
na verdade estão dizendo que negam a Deus. Neste ponto, é preciso notar que, por mais que lutem contra seu próprio sentimento e almejem não só daí alijar a Deus, mas até mesmo aboli-lo do céu, entretanto jamais a tal limite prevalece sua obtusidade, que Deus não os arraste com freqüência à barra de seu tribunal.

Mas, uma vez que não se deixam dominar de nenhum temor, e assim se arremetem violentamente contra Deus, certo é que, por quanto tempo assim os arrebata cego furor, neles reina animalesco olvido de Deus.


João Calvino