O que,
porém, trazem à baila da história dos Macabeus, com vistas a denegrir da credibilidade
da Escritura, é tal que não se pode conceber nada mais relevante para estabelecê-la.
Em primeiro lugar, contudo, diluamos o pretexto que apresentam; em seguida,
voltaremos contra eles o aríete que assestam contra nós.
Uma vez
que, dizem eles, Antíoco determinou que fossem queimados todos os
livros [1 Macabeus 1.56, 57], donde provieram os exemplares que agora temos?
Eu, porém, por minha vez, lhes pergunto: em que escritório poderia
tê-los produzido tão imediatamente? Ora, é evidente que continuaram a existir
logo após sustada a perseguição, e que foram reconhecidos sem controvérsia por
todos os piedosos, os quais, criados em sua doutrina, os conheciam intimamente.
Até pelo contrário, quando, quem sabe tramada uma conjuração, tenham todos os
ímpio tão desabridamente invectivado aos judeus, ninguém, entretanto,
jamais ousou atirar contra eles a pecha de forjadores de livros falsos.
Ademais, de qualquer natureza que, em sua opinião, seja a religião judaica,
reconhecem, no entanto, que Moisés é seu autor.
Portanto,
que outra coisa senão que seu descaramento mais que canino traem esses
paroleiros, enquanto acusam mentirosamente de serem espúrios livros cuja sagrada
antigüidade é atestada pelo consenso de todas as historias? Mas, para que, ao
refutar tão torpes cavilações, não dispenda esforço em vão, além do que se faz
necessário,
aqui ponderemos, antes, quão grande cuidado exercera o Senhor em conservar sua
Palavra, quando, além da expectação de todos, como se por um real incêndio, a
livrou da truculência do mais cruel tirano; que revestiu de tão alentada constância
a sacerdotes piedosos e a outras pessoas, de sorte que não hesitaram em transmitir
este precioso tesouro aos pósteros, redimidos, caso houvesse
necessidade, pelo custo da própria vida; o que frustrou a acérrima busca de
tantos dignitários e seus esbirros.
Quem não
reconhece como insigne e maravilhosa obra de Deus que esses documentos sagrados,
os quais os ímpios haviam se convencido de que pereceram inteiramente, bem logo
retornaram, por assim dizer, com direitos readquiridos e certamente
com
dignificação ainda maior? Pois, seguiu-se a tradução grega, que os
divulgaria por todo o orbe. Nem o milagre se manifestou somente nisto: que Deus
livrou as tábuas de sua aliança dos sanguinários editos de Antíoco, mas ainda
que, por entre as calamidades tão multíplices do povo judeu, pelas quais foi
continuamente
triturado e
devastado, bem logo quase reduzido ao extermínio, não obstante essas tábuas permaneceram
sãs e salvas. A língua hebraica não só jazia sem lustre ou prestígio, mas até quase
desconhecida e havia quase de todo perecido. Quanto,
pois, os
judeus se haviam desviado do real uso da língua pátria desde o tempo em que
retornaram do exílio, transparece dos profetas dessa época, o que é
especialmente proveitoso de se observar, porquanto desta comparação mais
claramente se
evoca a
antigüidade da lei e dos profetas.
E através
de quem Deus nos preservou a doutrina da salvação compreendida na lei e nos
profetas, para que, a seu tempo, Cristo houvesse de manifestar-se? Através
dos mais ferozes
inimigos do próprio Cristo, os judeus, a quem, por isso, Agostinho merecidamente
chama de os bibliotecários da Igreja Cristã, pois que nos subministraram leitura
de que eles próprios não se servem.
João
Calvino