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quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Confusão de criatura e Criador

Entretanto, por ora não vou tratar desse atoleiro de suínos. Ataco antes esses que, entregues a sutilezas contraditórias, de maneira oblíqua, invocariam deliberadamente esse insípido parecer de Aristóteles, tanto para anular a imortalidade da alma, quanto para arrebatar seu direito a Deus. Ora, dado que tenha a alma faculdades
orgânicas, com esse pretexto a ligam ao corpo de tal modo que sem este aquela não subsiste. Ademais, com seus louvores à natureza, suprimem o nome de Deus quanto lhes é possível. Entretanto, longe está que os poderes da alma se confinem às funções que servem ao corpo.

Que tem isto a ver com o corpo – que meças o céu, contes o número de estrelas, determines a grandeza de cada uma, saibas quanto distam entre si, com que celeridade ou lentidão completam seus cursos, quantos graus se inclinam para cá ou para lá? Indubitavelmente confesso que, se o estudo dos astros é de algum proveito, contudo estou apenas mostrando que nesta investigação tão elevada das coisas celestes não existe correção orgânica; ao contrário, a alma tem suas propriedades distintas do corpo.
Propus apenas um exemplo, do qual aos leitores será fácil deduzir os demais.
Indubitavelmente, a multiforme agilidade da alma, com que perscruta o céu e a terra, liga as coisas passadas às que estão por vir, retém em lembrança as coisas que há muito ouviu, até mesmo para si pinta o que bem lhe apraz, assim também a habilidade com que imagina coisas incríveis, e que é a matriz de tantas invenções
admiráveis, são seguros sinais da Deidade no homem.
Por que, enquanto a pessoa está dormindo, a alma não só vagueia e divaga em redor, mas ainda concebe muitas coisas úteis, cogita acerca de muitas questões, até adivinha fatos futuros? O que aqui se haverá de dizer senão que não se podem apagar os sinais da imortalidade que foram impressos no homem? Ora, que razão
admitirá que o homem seja divino e contudo não reconheça seu Criador? Com efeito, nós, em função da capacidade judicatória que nos foi outorgada, faremos distinção entre o justo e o injusto, porém nenhum juiz no céu haverá? A nós, até mesmo durante o sono, nos remanescerá certo resíduo de entendimento; Deus nenhum, porém,
estará de vigia a reger o mundo? De tantas artes e coisas úteis nos julgaremos inventores em moldes tais que Deus seja defraudado de seu louvor, quando, entretanto, a experiência suficientemente ensina que, em modos desiguais, o que temos nos é distribuído oriundo de outra procedência?
Quanto, porém, ao que alegam certos indivíduos acerca de uma inspiração secreta que anima a todo o universo, não só é destituído de consistência, mas inclusive é totalmente profano. Agradam-lhes as celebradas palavras de Vergílio: “Primeiramente, céu e terra e os campos de água fluentes, E o fulgente globo lunar, e as estrelas titânias, Um espírito interiormente os alimenta, e, pelos membros infusa, A toda a massa uma mente movimenta, e ao grande corpo se mistura. Daí a raça de homens e animais, e o alento dos seres voláteis, E os monstros que o mar produz sob a marmórea superfície; De fogo lhes é o alento e celeste a origem” etc.

Na realidade, assim é que o universo, que foi criado para manifestação da glória de Deus, é seu próprio criador!
Ora, em outro lugar, seguindo a noção comum a gregos e latinos, assim decanta o mesmo autor:
“Têm as abelhas, disseram, uma porção da mente divina, E haustos etéreos. Pois, por toda a terra Deus se estende, E pelas vastidões do oceano, e pelo céu profundo. Daqui os rebanhos, os armentos, os homens, toda espécie de feras, Cada um, ao nascer, tênue da vida a si aufere.
Isto é, a seguir, tudo aí retorna e, desfeito, se reintegra; Nem lugar há à morte, mas, vivos, evolam Às hostes sidéreas e ascendem do céu às alturas.”
Eis a que vale para gerar e fomentar a piedade no coração do homem essa infrutífera especulação acerca da mente universal que anima e vivifica ao mundo! Isso até transparece melhor das sacrílegas palavras desse cão impuro, Lucrécio, que foram
deduzidas desse princípio. Isto, afinal, é forjar uma deidade fantasma, de sorte que o Deus verdadeira para longe se afaste, a quem devíamos temer e adorar.
Certamente confesso que isto pode ser dito com reverência, desde que proceda de um espírito piedoso: que a natureza é Deus. Contudo, visto ser uma expressão dura e imprópria, já que a natureza é antes a ordem prescrita por Deus, em questões
de tão grande peso e em que se deve especial reverência, é prejudicial envolver a Deus ambiguamente com o curso inferior de suas obras.

João Calvino