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terça-feira, 25 de dezembro de 2018

O ABSOLUTISMO DA AUTORIDADE PAPAL QUE SE IMPLANTOU, EMBALADO NAS PRETENSÕES DILATADAS EXPRESSAS NOS DECRETOS DE GRACIANO

Agora, porém, ainda que concedamos hoje ao pontífice romano aquela eminência e amplitude de jurisdição que, nos tempos medievais, como os de Leão e Gregório, teve esta sé, que é isso em comparação ao papado atual? Não estou ainda falando do domínio terreno, nem do poder civil, do qual trataremos a seu tempo, mas do próprio regime espiritual que alardeiam, que semelhança tem ele com a condição daqueles tempos? Ora, não definem o papa de outra sorte senão a suprema cabeça da Igreja na terra e o bispo universal de todo o universo. Os próprios pontífices, porém, quando falam de sua autoridade, com grande vanglória proclamam que em sua mão está o poder de mandar, que aos outros resta a necessidade de obedecer, que assim lhes devem ser tidas todas as ordenanças como se confirmadas pela divina voz de Pedro; que os sínodos provinciais, visto que não têm a presença do papa, carecem de força, que eles podem ordenar clérigos em relação a toda e qualquer igreja, e à sua sé podem convocar aqueles que foram ordenados em outro lugar. Coisas inumeráveis desse gênero se encontram na miscelânea de Graciano, as quais não menciono para que não seja demasiado molesto aos leitores. A suma disto, contudo, se reduz nisto: só no poder do pontífice romano está o supremo conhecimento de todas as causas eclesiásticas, seja em se arbitrarem e se definirem doutrinas; seja em se sancionarem leis, seja em se estabelecer disciplina, seja em se efetuarem juízos. Além disso, os privilégios que assumem para si nas reservas, como as chamam, não só seria longo demais recenseá-los, como também supérfluo. Mas o que é de todos o mais supinamente intolerável é que não deixam nenhum juízo na terra para coibir e refrear-lhes a cupidez, se abusem de tão desmedido poder. Em razão do primado da igreja romana, dizem eles, a ninguém é lícito rever juízo desta sé. Igualmente, nem pelo Imperador, nem pelos reis, nem por todo o clero, nem pelo povo, o Juiz será julgado. Certamente ultrapassa toda medida que um homem só se constitua juiz de todos, e que não queira submeter-se ao juízo de ninguém. Mas, que sucederá se ele se conduz despoticamente para com o povo de Deus? Se converter seu ofício de pastor em latrocínio? Se destruir o reino de Cristo? Se perturbar toda a Igreja? Inclusive, ainda que seja um perverso e maldito, nega que pode ser obrigado a prestar conta. Ora, estas são as palavras dos pontífices: “Deus quis que as causas e pleitos dos demais homens sejam decididas pelos homens; mas o prelado desta sé o reservou, sem exceção alguma, para sua própria jurisdição.” Igualmente: “Os feitos de nossos súditos são julgados por nós; os nossos, porém, somente por Deus.”

João Calvino