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terça-feira, 25 de dezembro de 2018

O LIBELO DE BERNARDO DE CLAREVAL (1091–1153) QUANTO AO DEPLORÁVEL ESTADO DA IGREJA DE SEU TEMPO, SOB A LUVA DE FERRO PAPAL, SENDO A SÉ ROMANA O FOCO DE TODA CORRUPÇÃO

Como as coisas fossem de mal a pior, a tirania da igreja romana foi se robustecendo e crescendo passo a passo; e isto em parte pela ignorância dos bispos, em parte por sua negligência. Pois quando um só bispo assumiu a si todas as coisas, e sem medida avançasse mais e mais a exaltar-se contra o direito e o justo, sem conter sua ambição, os bispos não se opuseram com o zelo que deviam. E ainda que tivessem ânimo para fazê-lo, careciam da verdadeira ciência e sabedoria, de sorte que eram incapazes de enfrentar tal empresa. E assim vemos de que natureza e quão prodigiosa foi a profanação de todas as coisas sagradas em Roma e o desmantelamento de toda a ordem eclesiástica na época de Bernardo. Ele se queixa de que de todo o mundo corriam a Roma: os ambiciosos, os avaros, os simoníacos, os sacrílegos, os concubinados, os incestuosos e todos e quaisquer monstros deste gênero, para que, pela autoridade apostólica, ou obtivessem, ou retivessem honras eclesiásticas; e que a fraude, o logro, a violência reinavam por toda parte. Ele diz que a ordem que reinava no modo de julgar era execrável; e não só era vergonha usá-lo na Igreja, mas até mesmo nos tribunais. Ele clama que a Igreja estava repleta de ambiciosos, que não mais havia quem tremesse em perpetrar escândalos como ladrões em um covil, quando distribuem os despojos dos viajores assaltados. “Poucos”, diz ele, “atentam para a boca do legislador; todos atentam para suas mãos. Entretanto, não sem razão, porque todas elas agem em prol dos negócios papais.” “Que é isto, que de despojos das igrejas são comprados esses aduladores que te dizem: ‘Muito bem, muito bem?’ A vida dos pobres é semeada nas praças dos ricos, reluz a prata no lodo, de toda parte para aí se corre, a apanha não o mais pobre, mas o mais forte; ou, o que talvez mais depressa corre à frente. De ti, contudo, não vem este proceder, ou, antes, esta morte; meu desejo é que tu o faças cessar! E contudo tu, que eras o pastor, estás cercado de muito e precioso ornato. Se eu ousasse dizê-lo, diria que estas são pastagens mais de demônios do que de ovelhas. Evidentemente, assim fazia Pedro, assim se recreava Paulo!” “Tua cúria está mais acostumada a receber bens do que a fazê-los; porque aí os maus não se tornam melhores, mas os bons se tornam piores.” Nenhum fiel pode ler sem se estremecer de horror os abusos que se cometiam nas apelações. Por fim, assim ele conclui em referência a essa frenética cupidez da sé romana em usurpar jurisdição: “Enuncio o murmúrio e a queixa comum das igrejas. Elas bradam que estão sendo mutiladas e desmembradas. Não há nenhuma, ou bem poucas, que não lamentem ou temam essa praga. Pergunta-se: que praga? Os abades subtraem aos bispos sua jurisdição; os bispos, aos arcebispos etc. Seria maravilhoso se isto pudesse ser escusado! Ao fazê-lo, assim provais que tendes a plenitude do poder, porém não justiça. Fazeis isto porque o podeis; mas a questão é se porventura também o devais. Fostes investidos para conservar a cada um sua honra e grau, não detrair.” Estas poucas, dentre muitas coisas, aprouve-me referir de Bernardo para que em parte os leitores vejam quão gravemente caíra então a Igreja, também em parte para que reconheçam em quão grande tristeza e aflição ante a calamidade desta ordem mantiram todos os pios.

João Calvino