Mas, embora
careçamos de capacidade natural para podermos chegar ao puro e líquido
conhecimento de Deus, entretanto, porque o defeito dessa obtusidade está dentro
de nós, somos impedidos de toda e qualquer escusa. Pois não temos direito a tergiversação,
nem justificativa alguma, porque não podemos pretender tal ignorância
sem que
nossa própria consciência nos convença de negligência e ingratidão.
Uma defesa
sem dúvida digna de admitir-se seria esta: se o homem alega que lhe
faltaram ouvidos para ouvir a verdade, quando para declará-la às criaturas
mudas sobejam vozes mais do que canoras; se pleiteia que com os olhos não pode
ver o que lhe mostram as criaturas não dotadas de visão; se como
escusa evoca a deficiência
do
entendimento, quando o ensinam todas as criaturas destituídas de razão!
Daí com
razão sermos sumariamente excluídos de toda escusa, visto que, sem rumo e
desgarrados, nos extraviamos, quando todas as coisas nos apontam a
trilha certa. Entretanto, por mais que se deva imputar à depravação dos homens o
fato de que depressa corrompem a semente do conhecimento de Deus instilada
em sua mente pela admirável operação da natureza, de sorte que não alcance ela
a boa e pura frutificação, contudo é mui verdadeiro que, de modo algum,
somos nós suficientemente instruídos por essa testificação clara e singela que
é magnificantemente atribuída
pelas
criaturas à glória de Deus. Pois, no mesmo instante em que, da contemplação do
universo, degustamos ligeiro sorvo da Deidade, preterindo o Deus verdadeiro, erigimos-lhe
em lugar os sonhos e fantasias de nosso cérebro, e da própria fonte
transferimos para alguém ou para algo o louvor da justiça, da sabedoria, da bondade,
do poder. Ademais, seus feitos diários de tal modo os obscurecemos ou os
invertemos mediante juízo pervertido, que não só lhes arrebatamos a glória que
é dele, mas ainda o louvor que se deve a seu autor.