Antes,
porém, que se avance mais, é conveniente inserir certas considerações quanto
à autoridade da Escritura, considerações que não só preparem os espíritos
à sua reverência, mas também que dissipem toda dúvida. Ora, quando o que se
propõe é a Palavra de Deus, é evidente que ninguém demonstrará petulância tão deplorável
que ouse abolir a fé naquele que nela fala, salvo se, talvez, for
destituído não só de bom senso, mas até mesmo da própria humanidade.
Como,
porém, não se outorguem oráculos dos céus quotidianamente, e só subsistem as
Escrituras, na qual aprouve ao Senhor consagrar sua verdade e perpétua lembrança,
elas granjeiam entre os fiéis plena autoridade, não por outro direito senão
aquele que
emana do céu onde foram promulgadas, e, como sendo vivas, nelas se ouvem as
próprias palavras de Deus.
Certamente
que esta é matéria mui digna não só que seja tratada mais a fundo, mas que seja
ponderada ainda mais precisamente. Que me perdoem, porém, os leitores, se
atento mais para o que dita o propósito da obra encetada do que para o que requer
a amplitude deste assunto.
Entre a
maioria, entretanto, tem prevalecido o erro perniciosíssimo de que o valor que
assiste à Escritura é apenas até onde os alvitres da Igreja concedem.
Como se de fato a eterna e inviolável verdade de Deus se apoiasse no arbítrio
dos homens!
Pois, com
grande escárnio do Espírito Santo, assim indagam: “Quem porventura nos pode
fazer crer que essas coisas provieram de Deus?” Quem, por acaso, nos
pode atestar que elas chegaram até nossos dias inteiras e intatas? Quem,
afinal, nos pode persuadir de que este livro deve ser recebido
reverentemente, excluindo um
outro de seu
número, a não ser que a Igreja prescrevesse a norma infalível de todas essas
coisas?”
Depende,
portanto, da determinação da Igreja, dizem, não só que se deve reverência à
Escritura, como também que livros devam ser arrolados em seu cânon. E assim,
homens sacrílegos, enquanto, sob o pretexto da Igreja, visam a implantar desenfreada
tirania, não fazem caso dos absurdos em que se enredam a si próprios e
aos demais
com tal poder de fazer crer às pessoas simples que a Igreja tudo pode.
Ora, se
assim é, que acontecerá às pobres consciências que buscam sólida certeza da vida
eterna, se todas e quaisquer promessas que existem a seu respeito subsistam embasadas
unicamente no julgamento dos homens? Porventura, recebida uma resposta como
essa, deixarão elas de vacilar e tremer? Em contrapartida, que ocasião damos
aos infiéis de fazer troça e escárnio de nossa fé, e quantos a têm por suspeita
caso se cresse que tem sua autoridade como prestada pelo favor dos homens!
João Calvino