Sei
suficientemente bem ser comumente citada a declaração de Agostinho na qual ele
só creria no evangelho se a autoridade da Igreja o movesse isso. Entretanto,é
fácil de depreender, pelo próprio contexto, quão errônea e cavilosamente é ele
citado neste sentido. O fato é que ele estava envolvido com os maniqueus, os
quais
desejavam
ser cridos sem controvérsia, quando protestavam, sem que o comprovasse, que
tinham a verdade. De fato, visto que, para fomentarem confiança em seu Mani,
apelavam para o evangelho, pergunta Agostinho: que haveriam eles de
fazer se porventura se defrontassem com um homem que realmente não cresse no
evangelho?
Com que
gênero de argumentação haveriam de conduzi-lo a seu ponto de vista?
Acrescenta,
a seguir: “Eu, na verdade, não creria no evangelho” etc., querendo com isso dizer
que, enquanto era estranho à fé, não poderia ser levado de outra maneira a
abraçar o evangelho como a verdade infalível de Deus se não fosse compelido pela
autoridade da Igreja. E porventura surpreende se alguém, quando ainda
não conhece
a Cristo, se deixa levar pelo respeito humano?
Portanto,
Agostinho não está aqui ensinando que a fé dos piedosos está fundada na
autoridade da Igreja, nem entende que daí dependa a certeza do evangelho. Mas está
simplesmente ensinando que para os infiéis não haveria nenhuma certeza
do evangelho, para que sejam daí ganhos para Cristo, a não ser que o consenso
da
Igreja os
force. E isto ele confirma um pouco antes não de forma obscura, falando assim:
“Quando eu tiver louvado o que creio e tiver escarnecido o que
crês, o que pensas que devamos julgar, ou que devamos fazer, senão desertarmos
àqueles que nos convidam a conhecer coisas seguras, e depois ordenam que
creiamos coisas
incertas e
sigamos aqueles que antes nos convidam a crer o que ainda não somos capacitados
a ver, de sorte que, feitos mais ousados pela própria fé, façamos jus a entender
o que cremos, estando a firmar e iluminar-nos interiormente não mais o
espírito
dos homens, mas o próprio Deus?”
São estas,
textualmente, as palavras de Agostinho, das quais qualquer um pode concluir
prontamente que o santo varão não tivera esta intenção: que fizesse pendente da
autoridade ou do arbítrio da Igreja a fé que temos nas Escrituras; ao
contrário, que apenas indicasse, o que também confessamos ser
verdadeiro, que aqueles
que ainda
não foram iluminados pelo Espírito de Deus são induzidos à docilidade pela
reverência à Igreja, para que porfiem em aprender do evangelho a fé em Cristo.
E assim é
que, desse modo, a autoridade da Igreja é, a seu ver, a preparação
pela qual somos predispostos para a fé do evangelho. Portanto, como estamos
vendo, ele quer que a certeza dos piedosos se assente em fundamento bem
diverso.
Por outro
lado, não estou negando que, não raro, no empenho de afirmar a autoridade da
Escritura, a qual esses tais repudiavam, pressiona aos maniqueus com o consenso
da Igreja inteira. Donde aquela sua exprobração contra Fausto, visto que
ele não se submetia à verdade do evangelho, que era tão firme, tão
sólida, celebrada com glória tão imensa e recomendada por sólidas
sucessões desde o tempo dos apóstolos. Mas, em lugar algum ele pretendia
ensinar que a autoridade que deferimos às Escrituras deva depender da
definição ou do decreto de homens. Apenas traz
à baila o
parecer universal da Igreja, em que levava manifesta vantagem sobre os adversários,
porque no caso muito lhe valia.
Se alguém
deseja uma comprovação mais plena disto, leia seu livreto A Utilidade do
Crer, onde verificarás que ele não recomenda nenhuma outra disposição
de crer, senão unicamente aquela que nos faculte acesso e seja
oportuno começo da investigação, como ele próprio o diz,
contudo, que não se deve aquiescer à mera opinião, mas arrimar-se
na segura e sólida verdade.
João Calvino