Neste
aspecto, porém, destaca-se a felicidade incalculável da mente piedosa. Incontáveis
são os males que cercam a vida humana, males que outras tantas mortes ameaçam.
Para que não saiamos fora de nós mesmos, visto que o corpo é receptáculo
de mil enfermidades e na verdade dentro de si contém inclusas, e fomente
as causas das doenças, o homem não pode a si próprio mover sem que leve
consigo
muitas
formas de sua própria destruição, e de certo modo a vida arraste
entrelaçada com a morte.
Que outra coisa,
pois, podemos dizer, quando nem nos esfriamos, nem suamos, sem perigo? Ora,
para onde quer que nos volvamos, todas as coisas que estão ao derredor
não só não se mostram dignas de confiança, mas até se afiguram abertamente ameaçadoras
e parecem intentar morte inevitável. Se embarcamos em um navio, um passo
estamos da morte. Se montamos um cavalo, no tropeçar de uma pata nossa
vida periclita. Se andamos pelas ruas de uma cidade, quantas são as telhas nos
telhados, tantos são os perigos a que nos expomos. Se um instrumento cortante
está em nossa mão, ou na mão de um amigo, é evidente o risco que corremos.
A quantos
animais ferozes vemos, armados estão para nossa destruição. Ou se procuramos
fechar bem o jardim cercado, onde nada senão amenidade se mostre, aí não raro
esconderemos uma serpente. Tua casa, sujeita a incêndio constante,
ameaça-te pobreza durante o dia, até mesmo sufocação durante a noite. Tua terra
de plantio, como está exposta ao granizo, à geada, à seca e a outros flagelos,
esterilidade te anuncia e, como resultado, a fome. Deixo de mencionar
envenenamentos, emboscadas, assaltos, violência franca, dos quais parte nos
assedia em casa, parte nos acompanha do lado de fora.
Em meio a
estas dificuldades, porventura não deve o homem sentir-se em extremo miserável,
como quem na vida apenas semivivo sustenta debilmente o sôfrego e lânguido
alento, não menos que se tivesse uma espada perpetuamente a pender-lhe sobre o pescoço? Que digas que essas coisas raramente acontecem, ou, sem dúvida,
nem sempre, nem a todos, de fato, jamais todas a um só tempo. Concordo.
Todavia, quando
somos avisados pelos exemplos de outros de que podem acontecer também a nós e
de que nem se deve excetuar nossa vida mais que a deles, não é possível suceder
que não temamos e nos arreceemos como se não houvessem de nos sobrevir.
Portanto,
que de mais calamitoso possas imaginar que esse estado de medrosa
expectativa? E não seria grande afronta à glória de Deus dizer que o homem, a
mais excelente criatura de quantas existem, está exposto a qualquer golpe da
cega e temerária sorte? Mas aqui o
propósito é falar apenas acerca da miséria do homem, miséria que haverá
de sentir, se é relegado ao domínio da sorte.
João
Calvino