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sábado, 30 de junho de 2018

A certeza da Providência Divina nos sustenta ante os perigos múltiplos que nos Ameaçam


Neste aspecto, porém, destaca-se a felicidade incalculável da mente piedosa. Incontáveis são os males que cercam a vida humana, males que outras tantas mortes ameaçam. Para que não saiamos fora de nós mesmos, visto que o corpo é receptáculo de mil enfermidades e na verdade dentro de si contém inclusas, e fomente as causas das doenças, o homem não pode a si próprio mover sem que leve consigo
muitas formas de sua própria destruição, e de certo modo a vida arraste entrelaçada com a morte.
Que outra coisa, pois, podemos dizer, quando nem nos esfriamos, nem suamos, sem perigo? Ora, para onde quer que nos volvamos, todas as coisas que estão ao derredor não só não se mostram dignas de confiança, mas até se afiguram abertamente ameaçadoras e parecem intentar morte inevitável. Se embarcamos em um navio, um passo estamos da morte. Se montamos um cavalo, no tropeçar de uma pata nossa vida periclita. Se andamos pelas ruas de uma cidade, quantas são as telhas nos telhados, tantos são os perigos a que nos expomos. Se um instrumento cortante está em nossa mão, ou na mão de um amigo, é evidente o risco que corremos.
A quantos animais ferozes vemos, armados estão para nossa destruição. Ou se procuramos fechar bem o jardim cercado, onde nada senão amenidade se mostre, aí não raro esconderemos uma serpente. Tua casa, sujeita a incêndio constante, ameaça-te pobreza durante o dia, até mesmo sufocação durante a noite. Tua terra de plantio, como está exposta ao granizo, à geada, à seca e a outros flagelos, esterilidade te anuncia e, como resultado, a fome. Deixo de mencionar envenenamentos, emboscadas, assaltos, violência franca, dos quais parte nos assedia em casa, parte nos acompanha do lado de fora.
Em meio a estas dificuldades, porventura não deve o homem sentir-se em extremo miserável, como quem na vida apenas semivivo sustenta debilmente o sôfrego e lânguido alento, não menos que se tivesse uma espada perpetuamente a pender-lhe sobre o pescoço? Que digas que essas coisas raramente acontecem, ou, sem dúvida, nem sempre, nem a todos, de fato, jamais todas a um só tempo. Concordo. Todavia, quando somos avisados pelos exemplos de outros de que podem acontecer também a nós e de que nem se deve excetuar nossa vida mais que a deles, não é possível suceder que não temamos e nos arreceemos como se não houvessem de nos sobrevir.
Portanto, que de mais calamitoso possas imaginar que esse estado de medrosa expectativa? E não seria grande afronta à glória de Deus dizer que o homem, a mais excelente criatura de quantas existem, está exposto a qualquer golpe da cega e temerária sorte?  Mas aqui o propósito é falar apenas acerca da miséria do homem, miséria que haverá de sentir, se é relegado ao domínio da sorte.

João Calvino