Somos
obrigados a nos afastar um pouco desta maneira de ensinar, uma vez que os
filósofos, a quem era desconhecida a corrupção de nossa natureza, que
proveio da penalidade da queda, erroneamente confundem dois estados do homem
por demais diversos. A divisão que usaremos será considerar duas partes na
alma: o entendimento e a vontade. Entretanto, a
função do entendimento é discernir entre as coisas que lhe são
propostas, para ver qual há de ser aprovada e qual há de ser rejeitada; a
função da vontade, entretanto, é escolher e seguir o que o entendimento ditar
como bom, rejeitar e evitar o que ele houver desaprovado.
As
sutilezas de Aristóteles em nada nos delongam aqui, a saber, de que a
mente não tem nenhum movimento de si própria; ao contrário, é a escolha
que a move, à qual ele designa de entendimento apetitivo.99
Para que não nos enredilhemos em questões supérfluas, seja-nos bastante que o
entendimento é como que o guia e piloto da alma,
que a vontade sempre atenta para seu arbítrio e em seus desejos espera seu
juízo. Por isso, de fato ensinou o próprio Aristóteles em outro lugar: a aversão
e a busca do apetite são algo semelhante, que na mente é a afirmação ou a
negação. Com
efeito se verá em outro lugar quão firme, então, é o governo do entendimento em
dirigir a vontade. Aqui desejamos apenas salientar que na alma não se
pode achar nenhum poder que não se refira convenientemente a um ou outro destes
dois membros. E, desta maneira, incluímos sob o entendimento a sensibilidade,
o que
outros assim distinguem, dizendo que a sensibilidade se inclina para o prazer;
em contraposição de que o entendimento segue o bem. Daí resulta
que o apetite da sensibilidade se converte em concupiscência e lascívia,
a inclinação do entendimento se converte em vontade. Além disso, em
lugar do termo apetite, que
esses
preferem, emprego a palavra vontade, que é mais usada.
João
Calvino