Também
daqui se colige sólida prova deste fato: lemos que o homem foi criado à imagem
de Deus [Gn 1.27]. Ora, ainda que a glória de Deus refulja no próprio homem
exterior, contudo não há dúvida de que a sede própria da imagem está na alma.
Certamente que não deixo de admitir que a forma exterior, até onde nos distingue
e separa dos animais brutos, ao mesmo tempo nos une mais intimamente a Deus.
Nem mais veementemente contenderei, caso alguém insista que sob o conceito
de imagem de Deus deve-se levar em conta que “os outros animais, enquanto
se inclinam para baixo, o solo contemplam, ao homem se deu um semblante voltado
para cima e
determinado a contemplar o céu e as estrelas, erguendo seu vulto ereto”, contanto
que isto fique estabelecido: que a imagem de Deus, que se percebe ou esplende
nestas marcas exteriores, é espiritual.
Ora,
Osiandro, cujos escritos atestam ter sido ele perversamente engenhoso em
invenções fúteis, estendendo promiscuamente a imagem de Deus tanto ao corpo quanto
à alma, mistura o céu à terra.94 Afirma ele que o Pai, o Filho e o
Espírito Santo estabelecem sua imagem no homem, visto que, por mais que Adão se
houvesse
mantido
íntegro, Cristo, no entanto, haveria de ter-se feito homem. E assim, conforme seu
modo de ver, o corpo que fora destinado a Cristo foi o modelo e tipo daquela
figura corpórea que veio a ser formada então. Onde, porém, achará que Cristo é
a imagem do Espírito? Admito, sem dúvida, que na pessoa do Mediador
luza a
glória de toda a Deidade; entretanto, como haverá a Palavra Eterna de ser chamada
imagem do Espírito, a quem precede em ordem? Em suma, subverte-se a distinção
entre Filho e Espírito, se este chama àquele de imagem sua.
Além disso,
gostaria de saber dele [Osiandro] como Cristo representa ao Espírito Santo na
carne de que se revestiu, e com que marcas ou delineamentos lhe exprime a
semelhança. E, uma vez que essa expressão: “Façamos o homem” etc. [Gn 1.26] é
comum também à pessoa do Filho, segue-se que ele é a imagem de si pró- prio,
o que é contrário a toda razão. Ademais, se é aceita a fantasia de
Osiandro, o homem não foi formado senão em termos do tipo ou modelo de Cristo como
homem, e assim, até onde haveria de revestir-se de carne, Cristo foi o
arquétipo do qual Adão foi tomado, quando a Escritura ensina que ele foi criado
à imagem de
Deus em
sentido totalmente outro. Mais lustre tem a sutileza daqueles que sustentam que
Adão foi criado à imagem de Deus porque ele era conforme Cristo, que é de Deus
a imagem única. Entretanto, também nesta concepção nada há de sólido.
Discussão
bem acirrada há também a respeito de imagem e semelhança, enquanto entre estes
dois termos buscam os intérpretes uma diferença que não existe, salvo que
semelhança foi adicionada à guisa de explicação. Em primeiro lugar, sabemos
que entre
os hebreus as repetições eram triviais, através das quais exprimem duas vezes
uma só coisa; em segundo lugar, nenhuma ambigüidade há na própria matéria, a
saber, que o homem seja designado de imagem de Deus, porquanto é ele
semelhante a Deus. Do quê se evidencia serem ridículos aqueles que
acerca desses
vocábulos
filosofam com sutileza maior, quer atribuam tselem, isto é, a imagem,
à substância da alma, e demuth, isto é, a semelhança,
às suas qualidades, quer tragam a lume algo diverso. Quando, pois, Deus
decretou criar o homem à sua imagem,
porque não
era tão claro, explicativamente o reitera nesta breve locução: à semelhança,
como se estivesse a dizer que iria fazer um homem no qual, mediante marcas
impressas de semelhança, haveria de representar-se a si próprio como numa imagem.
Por isso, referindo o mesmo pouco depois, Moisés repete duas vezes a
frase imagem de Deus, omitindo a menção da semelhança.
Frívolo,
porém, é a objeção de Osiandro, que o que se diz ser a imagem de Deus não é uma
parte do homem, ou, seja, a alma com suas capacidades, mas Adão inteiro, a quem
o nome foi imposto da terra, donde foi tirado. Frívolo, digo-o, julgarão
ser isso todos os leitores sensatos. Ora, enquanto ao homem todo se denomina mortal,
nem por isso é a alma sujeita à morte; e quando, em contrário, se diz ser animal
racional, nem por isso a razão ou a inteligência pertence ao
corpo. Portanto, ainda que a alma não seja o homem, contudo não é
absurdo chamar-se ele imagem de
Deus no
tocante à alma, ainda que retenha o princípio que há pouco estabeleci, de que a
efígie de Deus se estende à excelência toda, pela qual a natureza do homem se sobreleva
por entre todas as espécies de seres animados.
Conseqüentemente,
com esta expressão se denota a integridade de que Adão foi dotado, quando era
possuído de reto entendimento, tinha as afeições ajustadas à razão, todos os
sentidos afinados em reta disposição e, mercê de tão exímios dotes, verdadeiramente
refletia a excelência de seu Artífice. E ainda que a sede primária
da imagem
divina tem de estar na mente e no coração, ou na alma e suas faculdades, contudo
nenhuma parte houve, quanto ao corpo, em que não brilhassem certas centelhas.
Certo é que
até mesmo em cada porção distinta do mundo fulgem certos traços da glória de Deus, donde, uma vez que sua
imagem está posta no homem, se pode concluir que subsiste tácita antítese que
eleva o homem acima de todas as demais criaturas e como que o separa da
massa vulgar. Aliás, nem se há de negar que os anjos foram criados à semelhança
de Deus, visto que, segundo Cristo o atesta [Mt 22.30], nossa suprema
perfeição será em fazer-nos semelhantes a eles. Nem em vão, porém, ressalta
Moisés, mediante este designativo peculiar, imagem e/ou semelhança, a
graça de Deus para conosco, especialmente quando o homem é comparado apenas às
criaturas visíveis.
João
Calvino