E de fato
Deus reivindica para si onipotência, e quer que reconheçamos que ela lhe é
inerente, não como a imaginam os sofistas, indiferente, ociosa e
semi-entorpecida; mas, ao contrário, vigorosa, eficaz, operosa e continuamente
voltada à ação; tampouco uma onipotência que seja apenas um princípio
geral de movimento indistinto, como se a um rio ordenasse que flua por leito
uma vez preestabelecido; mas, antes, de modo que se ajuste a movimentos
individuais e distintos. Por isso, pois, ele é tido por Onipotente, não porque
de fato possa agir, contudo às vezes cesse e permaneça inativo; ou, por
um impulso geral de continuidade ao curso da natureza que prefixou, mas porque,
governando céu e terra por sua providência, a tudo regula de tal modo que nada
ocorra senão por sua determinação. Pois, quando se diz no Salmo [115.3] que “Ele
faz tudo quanto quer”, trata-se de uma vontade definida e liberada. Ora,
seria insipiente interpretar estas palavras do Profeta à maneira dos filósofos, ou,
seja, que Deus é o agente primário, visto ser o princípio e a causa de todo
movimento, quando, antes, nas coisas adversas, os fiéis se confortam neste alento:
que, já que estão debaixo de sua mão, nada sofrem senão pela ordenação e mandado
de Deus. Pois, se o governo de Deus assim se estende a todas as suas obras, é
pueril cavilação limitá-lo ao influxo da natureza.
Evidentemente,
quantos limitam a providência de Deus em tão estreitos limites, como se
desejasse que as criaturas sigam o curso ordinário de sua natureza, roubam a
Deus de sua glória e se privam de uma doutrina mui útil; pois não haveria nada mais
desventuroso do que estar o homem sujeito a todos os movimentos do céu, da
atmosfera,
da terra e das águas. Acresce que, desse modo, é minimizada de uma forma em
extremo aviltante a bondade singular de Deus em relação a todos nós.
Davi
exclama [Sl 8.2] que crianças ainda a penderem dos seios das mães são bastante eloqüentes
para celebrarem a glória de Deus, visto que, imediatamente após saídas da
madre, acham para si alimento preparado pelo cuidado celeste. Isso é certamente
verdadeiro,
em geral, desde que não nos escape aos olhos e aos sentidos o que a
experiência evidencia amplamente: que certas mães têm mamas e seis abundantes, outras
os têm quase secos, conforme Deus quer alimentar mais generosamente a este,
porém a outro o quer mais parcamente.
Aqueles, porém, que tributam justo louvor à onipotência de
Deus, daí percebem duplo proveito. Primeiro, que poder mui amplo de
fazer o bem há com aquele em cuja posse estão o céu e aterra e a cujo arbítrio
as criaturas todas voltam os olhos, de sorte a devotar-se à sua obediência. Em
segundo lugar, podem descansar em segurança
na proteção
desse a cujo arbítrio se sujeitam todas as coisas que poderiam fazer-lhes dano;
sob cuja autoridade, não menos que de um freio, Satanás é coibido, juntamente
com todas as suas fúrias e todo o seu aparato; de cujo arbítrio pende tudo
quanto se opõe ao nosso bem-estar. Nem de outra sorte podem ser corrigidos ou
amenizados os temores imoderados e supersticiosos que, de vez em quando, concebemos
à vista de perigos. Digo que somos supersticiosamente medrosos, se cada vez que
as criaturas nos ameacem ou nos infundem algum receio, tememos como se elas
tivessem força e poder suficientes para fazer-nos mal, ou nos ferissem
ao acaso e inopinadamente, ou contra seus malefícios não houvesse em Deus
auxílio suficiente. Por exemplo, o Profeta [Jr 10.2] proíbe que os filhos de
Deus temam as estrelas e sinais do céu, como fazem os incrédulos. Por certo que
ele não condena a todo e
qualquer temor. Quando, porém, os infiéis transferem de Deus para os astros o
governo do universo, imaginam depender dos decretos e presságios dos astros,
contudo não da vontade de Deus, seja sua felicidade, seja sua desgraça.
Assim, em
vez de temer a Deus, a quem unicamente deveriam temer, temem as estrelas e os
cometas. Portanto, quem quiser guardar-se desta infidelidade, tenha sempre em
lembrança que não há
nas criaturas nem poder, nem ação, nem movimento aleatórios; ao contrário, são
de tal modo governados pelo conselho secreto de Deus, que nada acontece senão o
que ele, consciente e deliberadamente, o tenha decretado.
João
Calvino