Com efeito,
a não ser que admitam que tudo quanto acontece no mundo é governado pelo
desígnio incompreensível de Deus, respondam a que fim diz a Escritura que seus
juízos são um abismo profundo [Sl 36.6].
Ora, uma
vez que Moisés proclama [Dt 30.11-14] que a vontade de Deus não deve ser
buscada ao longe, nas nuvens ou nos abismos, porquanto familiarmente foi ela
exposta na lei, segue-se que outra vontade se compara ao abismo profundo, secreta,
acerca da qual também Paulo afirma: “Ó profundidade das riquezas, não só
da
sabedoria como também do conhecimento de Deus! Quão inescrutáveis são seus juízos
e insondáveis, seus caminhos! Pois, quem conheceu a mente do Senhor ou foi seu
conselheiro?” [Rm 11.33, 34].
E sem
dúvida é verdade que na lei e no evangelho se compreendem mistérios que pairam
muito acima do alcance de nossos sentidos. Mas, já que, para compreenderem esses
mistérios que se dignou revelar através da Palavra, com o espírito de entendimento
[Is 11.2], Deus ilumina a mente dos seus, para que nenhum abismo aí
se depare; ao contrário, um caminho no qual se possa andar
em segurança, e uma lâmpada para guiar os pés [Sl 119.115], a luz da vida [Jo
1.4; 8.12] e a escola da verdade sólida e meridiana. Todavia, sua admirável
maneira de governar o mundo com razão se denomina de abismo, porque, a despeito
de nos ser ignota, deve ser
reverentemente
por nós adorada.
Moisés
expressou magnificamente a ambos esses aspectos em poucas palavras: “As coisas
ocultas”, diz ele, “pertencem a nosso Deus; aquelas,
porém, que foram aqui escritas pertencem a vós e a vossos filhos” [Dt 29.29].
Vemos, pois, que ele ordena não apenas aplicarmos diligência em meditar
a lei, mas ainda reverentemente
contemplarmos
a providência secreta de Deus. Também, no livro de Jó se contém uma exaltação
desta excelsitude que humilha nosso espírito. Ora, depois que, com passar em
revista, de cima a baixo, a máquina do orbe, o autor dissertou magnificamente acerca
das obras de Deus, por fim acrescenta: “Eis que são estas apenas as
orlas de
seus caminhos, e quão pouco é o que nisso se ouve!” [Jó 26.14]. Razão
pela qual, em outro lugar [Jó 28.21, 28], ele faz distinção entre a sabedoria
que reside em Deus e a medida de conhecimento que prescreveu aos homens. Pois,
onde discursou
acerca dos
segredos da natureza, diz que a sabedoria é conhecida só a Deus, porém escapa
aos olhos de todos os viventes. Pouco depois, porém, acrescenta que a
sabedoria foi dada a conhecer para que fosse investigada, porquanto foi
dito ao homem: “Eis que o temor de Deus é a sabedoria” (Jó 28.28).
A isto visa
o dito de Agostinho: “Porque não conhecemos tudo que, na melhor disposição possível,
Deus opera em relação a nós, agimos só em boa vontade, segundo a lei; contudo,
segundo a lei, se age em outras coisas sobre nós, pois sua providência é
uma lei imutável.”
Portanto,
quando Deus a si reivindica o direito de governar o mundo por nós não plenamente
discernido, que esta seja a lei da sobriedade e da moderação: aquiescerlhe à
suprema autoridade, para que sua vontade nos seja a única regra de justiça e a
mui justa
causa de toda as coisas. Evidentemente, não aquela vontade absoluta da qual, a
separarem, em dissídio ímpio e profano, sua justiça de seu poder, tartamudeiam os
sofistas; ao contrário, aquela providência moderatriz de todas as coisas, da qual,
ainda que as razões nos sejam ocultas, nada promana senão o que é reto.
João
Calvino