Entretanto, enquanto isso o varão
piedoso não fechará os olhos às causas inferiores. Pois, só porque os julgará
serventuários da bondade divina, não significa que haverá por isso de preterir
àqueles de quem houver de ser tocado por um benefício, como se não houvessem de
ser merecedores de nenhuma gratidão por sua humanidade; ao contrário, se
sentirá bem perto de seu coração, e de bom grado lhe confessará a obrigação, e
deligenciará por manifestar-lhe o agradecimento, na medida da possibilidade e
deparada a oportunidade. Enfim, nos benefícios recebidos reverenciará e louvará
a Deus como seu principal autor, porém honrará aos homens como seus ministros
e, como é de fato, compreenderá haver sido ligado pela vontade de Deus àqueles
por cuja mão ele quis ser-lhes benévolo. Se, ou por negligência, ou por
imprudência, houver experimentado alguma perda, terá para si que isso se deu
realmente em virtude da vontade do Senhor; contudo, também a si próprio
imputará a culpa. Se porventura alguém for acometido de uma enfermidade, a quem
tratou com displicência, quando lhe devera ter a obrigação de cuidar, ainda que
não ignorará haver chegado a um termo além do qual não poderia passar, contudo
daí não relevará seu pecado; mas, porque não se desincumbira fielmente de seu
dever para com ele, aceitará isso exatamente como se perecesse por culpa de sua
negligência. Muito menos, onde hajam intervindo aleivosia e maldade premeditada
na prática de um homicídio ou de um furto, as justificará sob pretexto da
providência divina; ao contrário, contemplará distintamente no mesmo ato doloso
a justiça de Deus e a iniqüidade do homem, como se evidencia uma e outra
claramente. Mui particularmente, porém, em relação a eventos futuros, o homem
piedoso levará em conta
causas secundárias desta espécie. Ora, isso terá entre as bênçãos do Senhor, se
não houver de carecer dos recursos humanos de que se utilize para sua
incolumidade. Daí também não cessará de tomar conselhos, nem haverá de ser
lerdo em implorar a assistência daqueles a quem perceberá disporem de meios
donde haja de ser ajudado. Ao contrário, considerando que à mão se lhe oferecem
da parte do Senhor todas e quaisquer criaturas que lhe podem prover algo, as
porá para o uso como instrumentos legítimos da providência divina. E uma vez
que está incerto quanto a que resultado tenham os afazeres que empreende,
exceto que em todas as coisas sabe que o Senhor haverá de velar por seu bem,
aspirará com diligência, quanto pode alcançar pela inteligência e pelo
entendimento, àquilo que considere ser para sua conveniência. Nem contudo, ao
tomar deliberações, se deixará levar pelo próprio senso; antes, se confiará e
se submeterá à sabedoria de Deus, para que seja por sua orientação dirigido ao
alvo certo. Além disso, tampouco temos de pôr nossa confiança no auxílio e nos
meios terrenos, de tal maneira que quando os possuímos nos sintamos plenamente
tranqüilos, e quando nos faltam desfaleçamos, como se já não tivéssemos remédio
algum.124 Pois terá sempre a mente fixa unicamente na providência de Deus, nem
permitirá que de sua firme contemplação seja distraído pela consideração das
coisas presentes. Assim é que Joabe, ainda que reconheça que o resultado da batalha
está no arbítrio e mão de Deus, contudo não se entrega à inércia, mas executa
diligentemente o que lhe é da alçada; deixa, porém, ao Senhor a direção do
resultado: “Erguernos-emos firmes”, diz ele, “por nosso povo e pelas cidades de
nosso Deus; o Senhor, porém, faça o que é bom a seus olhos” [2Sm 10.12]. Este
mesmo conhecimento nos impelirá, despojados de temeridade e perversa presunção,
à contínua invocação de Deus; então também de boa esperança nos susterá o
ânimo, para que não hesitemos em desprezar, resoluta e corajosamente, os
perigos que nos cercam.
João
Calvino