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domingo, 17 de junho de 2018

A PROVIDÊNCIA NÃO ANULA A RESPONSABILIDADE HUMANA


Todos quantos se deixarem conduzir por esta moderação, não murmurarão contra Deus em vista das adversidades do passado, nem lançarão contra ele a culpa de suas iniqüidades, como o faz o Agamenão de Homero: – eu, porém, não sou causador, e, sim, Zeus e o Destino]. Nem tampouco em desespero, como se arrebatados pelos fados, à morte se atirarão, como aquele jovem Plauto: “Instável é a sorte das coisas; a seu talante, os fados conduzem os homens; lançar-me-ei contra um rochedo, para que ali com a vida eu perca os haveres.” Nem, com o exemplo de um outro, a seus maus feitos acobertarão com o nome de Deus. Pois, assim fala Licônides, em outra comédia de Plauto: “Deus foi o impulsor; creio que os deuses o quiseram, porquanto se não o quisessem, sei que não teria acontecido.”
Antes, bem ao contrário, indagarão e aprenderão da Escritura o que agrade a Deus, para que, sob a direção do Espírito, a isso se esforcem. Ao mesmo tempo, preparados para seguir a Deus aonde quer que os chame, deveras haverão de mostrar que nada é mais útil do que o conhecimento desta doutrina, doutrina que homens
perversos invectivam, sem razão, pelo fato de que certos indivíduos, desassisadamente,
dela abusam. Com suas parvoíces, homens profanos nesciamente provocam balbúrdia, de tal sorte que, como se diz, quase misturam o céu à terra. Se o Senhor assinalou o momento de nossa morte, argumentam que não há como fugir dela, logo é debalde diligenciar-se em tomar precauções.
Portanto, continuam eles, um deles não ousa entregar-se a um caminho que ouve ser perigoso, para que não seja trucidado por ladrões; o outro recorre a médicos e se cansa de medicamentos, para que lhe assista a vida; o outro se abstém de alimentos mais pesados, para que não prejudique a saúde já precária; o outro se arreceia de morar em casa que ameaça ruir; todos, afinal, cogitam meios, e os forjam com grande decisão de espírito, mercê dos quais alcancem aquilo que almejam: ou são todas estas coisas remédios fúteis, que se tomam para corrigir a vontade de Deus, ou a vida e a morte, a saúde e a doença, a paz e a guerra, e outras coisas que os homens, segundo ou as apetecem, ou as abominam, tanto se esforçam, por sua diligência, seja por obtê-las, seja por evitá-las, não são determinadas por seu decreto fixo. Até mesmo concluem que haverão de ser perversas, não só totalmente supérfluas, as orações dos fiéis nas quais se pede que o Senhor proveja àquelas coisas que decretou já desde a eternidade.
Em síntese, cancelam a todas as deliberações que se tomam em relação ao porvir, como se fossem diametralmente contrárias à providência de Deus, que, sem serem eles consultados, ele decretou o que queria que viesse a acontecer. Por outro lado, de tal maneira imputam à providência de Deus quanto acontece, que não levam
em conta o homem que se sabe muito bem ter cometido tal coisa. Um cidadão íntegro mata um sicário? Então dizem que “executou o desígnio de Deus”.
Alguém furtou ou cometeu adultério? Já que fez o que fora previsto e ordenado pelo Senhor, este é ministro de sua providência. Um filho negligenciou os remédios e aguardou displicentemente a morte do genitor? Não pôde resistir a Deus, que havia assim pré-estabelecido desde a eternidade. E assim a todos os crimes chamam virtudes,
porquanto são subservientes à ordenação de Deus.

João Calvino