Tampouco a
história sagrada mostra haverem sido anulados os decretos de Deus, quando narra
haver ele perdoado aos ninivitas a destruição que já fora proclamada [Jn 3.10],
e a Ezequias haver prolongado a vida, após haver sido anunciada sua morte
[Is 38.5]. Aqueles que pensam assim se equivocam nestas predições, as
quais,
ainda que
afirmem em termos absolutos, não obstante à luz do próprio desfecho se percebe
que contêm em si tácita condição. Ora, por que o Senhor enviara Jonas aos ninivitas
para que lhes predissesse a ruína da cidade? Por que, através de Isaías,
anunciava a Ezequias a morte? Pois ele podia destruir tanto aqueles
quanto este, sem anúncio de destruição. Portanto, teve em mira outra coisa,
a saber: que, premunidos de sua morte, de longe a vissem chegando. Na verdade,
não quis que perecessem; ao contrário, arrependidos, para que não perecessem.
Portanto, o fato de Jonas vaticinar que após quarenta dias Nínive haveria de
ser arrasada, ele o faz para que não fosse arrasada! A razão de a Ezequias
cortar-se a esperança de uma vida mais longa é para que ele lograsse uma
vida mais longa. Quem não percebe que, mediante ameaças desta ordem, o Senhor
queria despertar ao arrependimento àqueles a quem infundia medo, para
que escapassem ao juízo de que, por seus pecados, eram merecedores?
Se tal
coisa procede, a natureza das coisas nos conduz a isto: que na ameaça inqualificada
subentendemos tácita condição; o que, aliás, se confirma à luz de
exemplos semelhantes. Repreendendo ao rei Abimeleque, porque havia tirado de Abraão
a esposa, o Senhor faz uso destas palavras: “Eis que morrerás por causa da mulher
que tomaste, pois ela tem marido” [Gn 20.3]. Entretanto, depois que ele
se desculpou, o Senhor fala deste modo: “Restitui a esposa ao marido,
pois é profeta, e ele orará por ti para que vivas. Do contrário, sabe
que certamente morrerás tu e tudo que tens” [Gn 20.7]. Vês como na primeira
acariação lhe acicata mais incisivamente o espírito, para que o demovesse a
restituir o que havia tomado; na outra, porém, exibe mais claramente seu
propósito.
Uma vez que
o sentido de outras passagens é semelhante, não há razão para deduzires delas
que se haja anulado alguma coisa do desígnio prévio do Senhor, pelo fato de
haver revogado o que anteriormente promulgara. Pois o Senhor
aplaina o caminho para sua eterna determinação quando, anunciando o castigo,
exorta ao arrependimento àqueles a quem quer poupar, antes que algo
varie em sua vontade, e certamente não em sua palavra, exceto que
não exprime, sílaba a sílaba, o que entretanto é fácil de entender. Se
realmente deva permanecer verdadeira esta afirmação de Isaías: “O Senhor dos
Exércitos o deliberou, e quem o poderá anular? Sua
mão está
estendida, e quem a desviará?” [Is 14.27].
João
Calvino