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quinta-feira, 7 de junho de 2018

O Homem foi criado sem mácula: Deus não é culpado do pecado Humano


Convém-nos falar agora da criação do homem, não apenas porque dentre todas as obras de Deus é ele a expressão mais nobre e sumamente admirável de sua justiça, sabedoria e bondade, mas ainda porque, como dissemos de início, Deus não nos pode ser clara e plenamente conhecido, a não ser que se acresça conhecimento correlato de nós mesmos. E visto ser duplo esse conhecimento de nós próprios, isto é, que saibamos como fomos criados em nosso estado original e como começou a ser nossa condição após a queda de Adão (aliás, nem seria de muito proveito conhecer nossa criação, a não ser que reconhecêssemos qual é a corrupção e deformidade de nossa natureza nesta desoladora ruína em que nos achamos); agora, contudo, nos haveremos de contentar com a descrição de nossa natureza íntegra, como era originalmente.
E, realmente, antes que desçamos a esta mísera condição do homem a que ora está sujeito, é de relevância conhecer como foi inicialmente criado. Ora, importa guardar-nos, para que, destacando incisivamente apenas os aspectos maus da natureza humana, não pareçamos atribui-los ao autor dessa natureza, uma vez que, neste pretexto, julga que a impiedade é bastante defensável, se consegue
pleitear, de algum modo, haver procedido de Deus tudo quanto de mau tem ela, nem vacila, se é reprovada, em litigar com o próprio Deus e imputar-lhe a culpa de que é merecidamente incriminada. E mesmo aqueles que querem parecer falar mais reverentemente acerca da divina majestade, ainda assim procuram deliberadamente
achar na própria natureza escusa de sua depravação, não refletindo que também eles, embora mais simuladamente, ultrajam a Deus, visto que lhe recairia ignomínia, se fosse provado ser qualquer mácula inerente à natureza original. Portanto, quando vemos a carne a palpitar hiante por todos os subterfúgios com que, de todos os modos, pensa desviar de si para outro a culpa do que tem de mau, a
esta perversidade devemos contrapor-nos diligentemente. Portanto, a miséria do gênero humano deve ser tratada de tal modo, que toda tergiversação se extirpe de
antemão e a justiça de Deus seja vindicada de toda invectiva. Mais adiante, no devido lugar, veremos quão longe os homens estão daquela pureza com que Adão fora dotado.
Em primeiro lugar, uma vez que o homem foi tomado da terra e do barro, é preciso reconhecer que assim ao orgulho foi posto um freio, pois nada é mais absurdo do que se gloriarem de sua excelência aqueles que não só “habitam uma casa de barro” [Jó 4.19], mas ainda, como tais, em parte eles próprios são terra e cinza.
Visto, porém, que Deus se dignou não só animar a um vaso de terra, como também quis que o mesmo fosse a habitação de um espírito imortal, Adão pôde gloriar-se nessa generosidade tão ingente de seu Criador.


João Calvino