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quinta-feira, 10 de maio de 2018

HÁ NO FILHO A MESMA DIVINDADE DO PAI


Deste charco saiu outro monstro não diferente. Pois certos biltres, para evadirse à odiosidade e ignomínia da impiedade de Serveto, confessaram que, na realidade, há três pessoas, desde que se faça, porém, a restrição de que o Pai, que é o único verdadeiro e propriamente Deus, ao formar o Filho e o Espírito, neles comunicou
sua deidade. Além do mais, eles não se abstêm desta horrenda maneira de falar: que o Pai se distingue do Filho e do Espírito por esta marca: somente ele é o essenciador.
De preferência, evocam este pretexto: que Cristo é generalizadamente designado de Filho de Deus, do quê concluem que nenhum outro é propriamente Deus, senão o Pai. Não observam, entretanto, que, embora o designativo Deus seja também
comum ao Filho, todavia às vezes se prescreve – por excelência; por via de eminência] ao Pai, porquanto é ele a fonte e o princípio da
Deidade, e isso para acentuar-se a unidade indivisa da essência. Objetam que, se ele é verdadeiramente o Filho de Deus, é absurdo que ele seja Filho de uma Pessoa! Eu respondo que ambas as coisas são verdadeiras, isto é, que ele é o Filho de Deus,
porque é a Palavra gerada pelo Pai antes de todas as eras – pois ainda não estamos tratando da pessoa do Mediador –, e todavia que, no interesse de explicação mais precisa dos termos, deve-se dar consideração ao designativo Pessoa, de sorte que aqui não se tome o designativo Deus inqualificadamente, mas pelo termo Pai. Ora, se não temos nenhum outro por Deus senão o Pai, evidentemente o Filho se rebaixa desta dignidade.
Portanto, sempre que se faz menção da Deidade, de modo algum se deve admitir antítese entre o Filho e o Pai, como se o designativo de verdadeiro Deus conviesse somente a este. Ora, naturalmente que o Deus que se manifestou a Isaías [6.1] foi o Deus verdadeiro e único, o qual, no entanto [Jo 12.41], afirma que era Cristo. Também
aquele que testificou pela boca de Isaías [8.14] que haveria de ser ao judeus por pedra de tropeço, era o Deus único, o qual Paulo [Rm 9.33] declara ter sido Cristo. Aquele que proclama, por intermédio de Isaías [45.23]: “Assim como eu vivo, diante de mim se dobrará todo joelho”, é o Deus único a falar, todavia Paulo (Rm 14.11) o interpreta como sendo Cristo.
Acrescem a isto os testemunhos que o Apóstolo evoca [Hb 1.10; 1.6]: “Tu, ó Deus, lançaste os fundamentos do céu e da terra” [Sl 102.25]; de igual sorte: “Adorem- no todos os anjos de Deus” [Sl 97.7], exclamações que realmente competem só ao Deus único, quando, no entanto, lemos serem encômios próprios de Cristo.
E não tem força alguma o que objetam, dizendo que se atribui a Cristo o que só a Deus pertence, visto ser ele o resplendor de sua glória74 [Hb 1.3]. Ora, já que em todas essas passagens se usa o termo Senhor, então, se ele é o Senhor, não se pode
negar que ele seja aquele mesmo Deus que, por intermédio de Isaías, proclama em outro lugar [Is 44.6]: “Eu, eu sou, e além de mim não há Deus.”
Convém atentar também para esta de Jeremias [10.11]: “Os deuses que não fizeram os céus e a terra desaparecerão da terra e de debaixo da terra”, quando, por outro lado, será necessário confessar que aquele cuja divindade com muita frequência em Isaías se prova ser o Filho de Deus o autor da criação do universo. Como,
porém, o Criador não existirá por si mesmo, mas derivará de outra parte sua essência, ele que a tudo outorga o ser? Ora, todo aquele que afirma que o Filho recebeu do Pai a essência nega que ele tenha auto-existência. Mas o Espírito Santo contradiz isto, chamando-o Senhor.
Ora, se admitimos que toda a essência só esteja no Pai, ou ela se fará divisível, ou estará totalmente ausente do Filho; e assim, despojado de sua essência, ele será Deus apenas em nome. Se porventura se der crédito a esses caçadores de picuinhas,
a essência de Deus só convém ao Pai, já que só ele é e é quem outorga ao Filho a essência. Assim, a divindade do Filho será algo alheio à essência de Deus, ou a derivação de uma parte do todo.
Além disso, em função de seu princípio, é necessário admitir que o Espírito é somente do Pai, porquanto se é ele derivação da essência primária, a qual não é própria senão ao Pai, de direito não se considerará o Espírito como sendo do Filho,
o que, no entanto, é refutado pelo testemunho de Paulo, o qual o faz comum a Cristo e ao Pai [Rm 8.9]. Além disso, se a pessoa do Pai for eliminada da Trindade, em que ele diferirá do Filho e do Espírito, a não ser o fato de que somente ele é propriamente Deus?
Confessam que Cristo é Deus, e não obstante dizem que ele difere do Pai. Por outro lado, é preciso haver alguma característica de diferenciação, para que o Pai não seja o Filho. Os que a põem na essência, manifestamente reduzem a nada a verdadeira deidade de Cristo, que não pode existir sem a essência, e de fato toda a
essência. Por certo que o Pai não diferirá do Filho, a não ser que tenha em si algo próprio, que não seja comum ao Filho.
Ora, em que, pois, os diferenciarão? Se a diferenciação está na essência, respondam se ele a tenha ou não compartilhado com o Filho? Isto, na verdade, não pode ser em parte, pois que seria ímpio forjar um meio Deus. Além do mais, dessa forma cindiriam abominavelmente a essência de Deus. Resta que ela toda seja comum ao Pai e ao Filho. Se isto é verdadeiro, então realmente nenhuma diferenciação haverá de um em relação ao outro no que tange à própria essência. Se contrapõem dizendo que o Pai, ao conferir a essência, não obstante permanece o Deus único, em quem está a essência, Cristo, conseqüentemente, será um Deus figurativo, e só Deus em aparência ou em nome, não em realidade, já que não há nada que seja mais próprio de Deus do que ser, conforme esta afirmação:76 “O que é me enviou a vós” [Ex 3.14].

João Calvino