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quinta-feira, 10 de maio de 2018

O Termo Deus não se aplica exclusivamente ao Pai; ele é igualmente extensivo à Palavra


Que indubitavelmente é falso o que assumem, isto é, que tantas vezes quantas se faz menção de Deus na Escritura, sem qualificação, deve-se entender somente o Pai, é facilmente refutável à luz de muitas passagens. E naquelas mesmas referências
que citam a seu favor, manifestam vergonhosamente sua falta de reflexão, pois que nelas o nome do Filho se ajusta ao nome do Pai, donde se evidencia que se toma o termo Deus de modo relacional, e portanto se restringe à pessoa do Pai. E com uma palavra se dissolve sua objeção: a não ser que só o Pai, dizem eles, fosse o
verdadeiro Deus, seria ele seu próprio Pai. Ora, tampouco é absurdo que, em função de grau e ordem, Deus seja chamado de maneira peculiar aquele que não só gerou de si sua Sabedoria, mas é ainda o Deus do Mediador, como exporei mais plenamente no devido lugar. Pois desde que Cristo se manifestou na carne ele é chamado o Filho de Deus, não só em que a Palavra eterna foi gerada do Pai, antes dos séculos, mas também porque, para unir-nos a Deus, assumiu a pessoa e o ofício do Mediador.
E, uma vez que tão ousadamente excluem o Filho da dignidade de Deus, gostaria de saber se porventura se priva ele de bondade quando declara [Mt 19.17] que ninguém há bom senão o Deus único. Não estou falando de sua natureza humana, para que por acaso não revidem dizendo que toda e qualquer coisa que nela houve de bom lhe proviera de dom gracioso. Pergunto se o eterno Verbo de Deus é bom ou não. Se o negam, sua impiedade fica plenamente indiciada; admitindo-o, cortam a garganta a si próprios. Quanto ao fato, porém, que à primeira vista Cristo parece declinar de si o qualitativo bom, isso nos confirma ainda mais a declaração, porque, afinal, sendo que este é um atributo singular do Deus único, rejeitando a falsa honra em que fora saudado como bom à maneira vulgar, adverte que era divina a bondade com que era dotado.
Portanto, pergunto se, onde Paulo afirma que só Deus é imortal, sábio e verdadeiro [1Tm 1.17; Rm 16.27; 3.4], porventura com estas palavras Cristo é reduzido ao nível dos mortais, dos insipientes e dos falaciosos? Daí, não será imortal aquele que desde o princípio foi a vida, de sorte que conferisse a imortalidade aos anjos?
Não será sábio aquele que é a eterna sabedoria de Deus? Não será verdadeiro aquele que é a própria verdade?
Indago, além disso, se são de parecer que Cristo deva ser adorado. Pois, se de direito vindica isto para si: que todo joelho se dobre diante dele [Fp 2.10], segue-se que ele é aquele Deus que na lei proibiu que se adorasse a qualquer outro, além dele [Ex 20.3; 5.7]. Se querem que o que se diz em Isaías [44.6] se admita ser só a
respeito do Pai: “Eu sou, e ninguém além de mim”, este mesmo testemunho volto contra eles, porquanto vemos que a Cristo se atribui tudo o que é próprio de Deus.
Nem procede sua cavilosa distinção de que Cristo foi exaltado na carne, na qual se havia humilhado, e que todo poder lhe fora dado no céu e na terra com respeito à condição na carne, porque, embora a majestade de Rei e Juiz se estenda a toda a pessoa do Mediador, a não ser que ele fosse também Deus manifesto em carne, não
pôde ser guindado a tão sublimada exaltação sem pôr em conflito consigo o próprio Deus. E esta controvérsia a dirime Paulo muito bem, ensinando ter sido ele igual a Deus antes de humilhar-se sob a forma de servo [Fp 2.6, 7]. Com efeito, como poderia subsistir esta igualdade, a não ser que ele tivesse sido aquele Deus cujo
nome é Jah e Jeová, que cavalga por sobre os querubins [Sl 18.10; 80.1; 99.1], que é Rei de toda a terra [Sl 47.7, 8] e Rei dos séculos?
Ora, por mais que vociferem, não se pode privar a Cristo do que Isaías diz em outro lugar: “Este é o nosso Deus, e nele temos esperado” [Is 25.9], quando descreve com estas palavras a vinda do Deus Redentor, que não só traria o povo de volta do exílio babilônico, mas também restauraria plenamente a Igreja em todos os seus números.
Também nada conseguem com esta outra cavilação: que Cristo foi Deus em função do próprio Pai. Ora, ainda que confessemos que, no tocante à ordem e gradação, no Pai está o princípio da divindade, contudo afirmamos ser este um constructo detestável: que a essência é própria só do Pai como se ele fosse deificador do Filho,
porque, desse modo, ou a essência teria de ser múltipla ou a Cristo chamam Deus apenas em título e imaginação. Se admitem que o Filho é Deus, todavia em segundo plano em relação ao Pai, então a essência que no Pai é ingênita e não criada, nele terá sido gerada e criada.
Sei que a muitos espíritos zombeteiros é motivo de galhofa quando deduzimos das palavras de Moisés a distinção das pessoas, onde apresenta a Deus falando assim: “Façamos o homem à nossa imagem” [Gn 1.26]. Vêem, entretanto, os leitores piedosos quão frívola e improcedentemente Moisés introduziria este como que
colóquio, se no Deus uno e único não subsistisse uma pluralidade de pessoas. Ora, aqueles a quem o Pai dirige a palavra por certo eram seres increados. Entretanto, nada increado, exceto o próprio Deus, e sem dúvida uno e único. Ora, pois, a não ser que admitam ser comum ao Filho e ao Espírito, com o Pai, o poder de criar, e
comum a autoridade de ditar ordens, se seguirá que Deus não falou consigo mesmo no âmbito de sua interioridade; ao contrário, ele dirigiu a palavra a outros artífices exteriores.
Finalmente, um só texto esclarece suas objeções numa só passagem. Com efeito, o que o próprio Cristo declara: que “Deus é Espírito” [Jo 4.24], não seria consentâneo o restringir somente ao Pai, como se o próprio Verbo não fosse de natureza espiritual. Porque, se o designativo Espírito convém ao Filho, de igual modo como ao Pai, concluo que sob o termo indefinido Deus está compreendido o Filho. Acrescenta, porém, imediatamente após que ninguém prova ser adorador de Deus senão “aqueles que o adoram em espírito e em verdade” [Jo 4.23]. Do quê se deduz a outra
conclusão: uma vez que Cristo exerce o ofício magisterial em subordinação ao Cabeça, atribui ele ao Pai o título Deus, não para abolir sua própria divindade, mas para que a ela nos conduza gradualmente.

João Calvino