Total de visualizações de página

quarta-feira, 23 de maio de 2018

O Conhecimento de Deus à base da Criação e o despautério da especulatividade


Embora, com procedente razão, censure Isaías [40.21] a obtusidade dos adoradores de falsos deuses, porquanto não haviam aprendido sobre o Deus verdadeiro à luz dos fundamentos da terra e do âmbito dos céus, visto nos ser tão profunda a lerdeza e entorpecimento do intelecto, foi necessário, para que os fiéis não aprendessem as
vãs criações dos povos, ser-lhes pintado mais expressamente o Deus verdadeiro.
Pois, visto que a maneira mais aceitável usada pelos filósofos para explicar o que é Deus, a saber, que é a alma do mundo, que não passa de uma fútil sombra, é conveniente que o conheçamos bem mais intimamente, a fim de que não andemos sempre vacilando entre dúvidas. Portanto, quis ele se fizesse patente a história da criação, apoiada à qual a fé da Igreja não buscasse a outro Deus, senão aquele que foi por Moisés proposto como o Artífice e Fundador do universo. Aí foi, primeiramente, computado o tempo, de sorte que, mediante a série contínua dos anos, os fiéis chegassem
à origem primordial do gênero humano e de todas as coisas. Este conhecimento é especialmente insigne não apenas para que se vá de encontro às monstruosas fábulas que estiveram em voga outrora no Egito e em outras regiões da terra, mas também para que, conhecido o começo do mundo, luza mais esplendorosamente
a eternidade de Deus e mais nos arrebate à sua admiração.
Realmente não nos deve abalar essa profana teimosia, de que é surpreendente por que não ocorreu à mente de Deus criar mais cedo o céu e a terra, antes, ocioso, tenha ele deixado escoar-se imenso espaço de tempo, uma vez que poderia tê-los feito muitíssimos milênios antes, quando a duração do mundo, a vergar para seu
fim derradeiro, não haja ainda chegado a seis mil anos. Ora, por que haja Deus protelado por tanto tempo, não nos é próprio indagar, nem conveniente, porquanto, se a mente humana se empenha em chegar até esse ponto, cem vezes pelo caminho desfalecerá; nem mesmo seria de proveito conhecer o que o próprio Deus, para provar-nos a sobriedade da fé, achou por bem nos fosse escondido. E, judiciosamente, como em galhofa lhe perguntasse certo individuo abelhudo o que Deus estivera fazendo antes de o mundo ser criado, respondeu aquele piedoso ancião: a construir o inferno para os curiosos. Que esta advertência, não menos grave que severa,
contenha a desbragada tendência que a muitos excita, até mesmo impele, a pervertidas e danosas especulações!
Finalmente, lembremo-nos de que esse Deus invisível, e de quem incompreensível é a sabedoria, o poder e a justiça, nos põe diante a história de Moisés como um espelho no qual reflete sua viva imagem. Pois, assim como os olhos, ou toldados pela decrepitude da velhice, ou entorpecidos de outro defeito qualquer, nada percebem distintamente, a menos que sejam ajudados por óculos, de igual modo nossa insuficiência é tal que, a não ser que a Escritura nos dirija na busca de Deus, de pronto nos extraviamos totalmente. Aqueles, porém, que cedem indulgentes à sua
petulância, uma vez que são agora debalde avisados, bem tarde, em deplorável ruína,
sentirão quão preferível lhes teria sido, com toda reverência, mirar os secretos conselhos de Deus a vomitarem blasfêmias com que obscureçam os céus.
E Agostinho se queixa, com justa razão, de que se faz ofensa a Deus quando se postula das coisas causa superior à sua vontade.80 O mesmo Agostinho sabiamente adverte, em outro lugar, que não menos errôneo é suscitar-se perquirição acerca das imensuráveis extensões dos tempos e dos espaços. Por certo que, por mais vastamente que se estenda o circuito dos céus, entretanto algum limite, lhe dá. Ora, se alguém discutir com Deus, dizendo que o vácuo supera os céus cem vezes mais, porventura tal petulância não será detestável a todos os fiéis? No mesmo tresloucado desvario tripudiam os que apostrofam o ócio de Deus, pelo fato de que, segundo seu modo de julgar, não criou o universo incontáveis séculos antes. Para que à própria cupidez satisfaçam ao capricho, ousam passar além do mundo, como se, na verdade, na tão vasta circunferência do céu e da terra não se nos deparem elementos
assaz suficientes que, mercê de seu inestimável fulgor, nos absorvam todos os sentidos; como se dentro de seis mil anos Deus na haja produzido testemunhos mais do que suficientes em cuja constante meditação deva exercitar-se nossa mente.
Portanto, permaneçamos, de bom grado, encerrados dentro destes limites aos quais Deus nos quis circunscrever e como que constringir-nos a mente, para que não se extravie na desmedida ânsia de divagar.


João Calvino