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quinta-feira, 31 de maio de 2018

A Realidade pessoal dos seres Diabólicos


Entretanto, da mesma forma que acima refutamos aquela vã filosofia acerca dos santos anjos, a qual ensina que eles nada mais são do que inspirações ou impulsos bons que Deus desperta na mente dos homens, assim também, neste ponto, deve-se refutar aqueles que desdenham dizendo que os seres diabólicos nada mais são do
que maus sentimentos ou distúrbios que nossa carne suscita. Isso será bem mais fácil de refutar, porque há inumeráveis testemunhos da Escritura sobre esta matéria.
Em primeiro lugar, quando são chamados espíritos imundos e anjos apóstatas [Mt 12.43; 2Pe 2.4; Jd 6], que decaíram de sua condição original, os próprios termos expressam suficientemente não impulsos ou sentimentos da mente, mas, antes, que são chamados: mentes ou espíritos dotados de sensibilidade e entendimento. Semelhantemente quando, tanto por Cristo quanto por João, os filhos de Deus são comparados com os filhos do Diabo [Jo 8.44; 1Jo 3.10], não seria porventura inepta a comparação, se o termo Diabo nada designasse senão inspirações más? E João acrescenta algo ainda mais pertinente: que o Diabo peca desde o princípio [1Jo 3.8].
De modo semelhante, quando Judas [v. 9] apresenta o Arcanjo Miguel a contender com o Diabo, certamente que o anjo bom se opõe a um mau e rebelde. Ao que isto se harmoniza bem com o que se lê na história de Jó: que Satanás compareceu diante de Deus com os santos anjos [Jó 1.6; 2.1].
De todas, porém, as mais explícitas são aquelas passagens que fazem menção do castigo que os demônios começam a sentir do juízo de Deus, e haverão de sentir principalmente na ressurreição. “Filho de Davi, por que vieste atormentar-nos antes do tempo?” [Mt 8.29]. Também: “Ide-vos, malditos, para o fogo eterno que foi preparado para o Diabo e seus anjos” [Mt 25.41]. Ainda: “Se não poupou aos próprios anjos, mas, encerrados em cadeias, os lançou nas trevas para que fossem reservados à condenação eterna” etc. [2Pe 2.4]. Quão improcedentes haveriam de ser estas expressões: que os seres diabólicos foram destinados ao juízo eterno; que fogo lhes foi preparado; que mesmo agora são atormentados e torturados pela glória de Cristo, se simplesmente não existissem nenhum diabo? Mas, uma vez que esta matéria não requer discussão entre aqueles que têm fé na Palavra do Senhor, enquanto entre esses especuladores fúteis pouco há de proveito nos testemunhos da Escritura, aos quais nada apraz senão o que é novidade, a mim
me parece que levei a bom termo o que me propus, isto é, que as mentes piedosas tenham sido instruídas contra desvarios desse gênero, com que homens irrequietos perturbam a si próprios e a outros mais simplórios que eles. Além disso, também valeu a pena abordar isto, para que os que estão enredilhados nesse erro, enquanto pensam que nenhum inimigo têm, não se tornem mais remissos e improvidentes a resistir.

João Calvino

Limitação do poder Satânico sobre os Crentes e domínio sobre os Incrédulos


Ora, visto ser verdade que Deus verga os espíritos imundos para cá e para lá, conforme lhe apraz, de tal modo regula este regime que, lutando, aos fiéis molestam, acometem com ciladas, investem com incursões, acossam em combate, não raro até os prostram exaustos, os lançam em confusão, os tornam aterrorizados e, por vezes, lhes infligem feridas, mas jamais os vencem, nem prostram subjugados, enquanto aos ímpios arrastam em sujeição, lhes exercem domínio na alma e no corpo, usam de toda sorte de desregramentos como de escravos.
No tocante aos fiéis, porquanto são inquietados por inimigos deste gênero, por isso ouvem estas exortações: “Não deis lugar ao Diabo” [Ef 4.27]; “O Diabo, vosso inimigo, anda em derredor, como um leão a rugir, buscando a quem devorar, ao qual resisti firmes na fé” [1Pe 5.8]; e semelhantes. A este gênero de luta Paulo confessa não estar imune, quando escreve [2Co 12.7] que, como remédio para quebrantar-lhe o orgulho, lhe foi dado um anjo de Satanás, pelo qual fosse humilhado. Portanto, esta é uma experiência comum a todos os filhos de Deus. Visto, porém, que aquela promessa quanto a haver de ser esmagada a cabeça de Satanás [Gn 3.15] pertence em comum a Cristo e a todos os seus membros, por isso nego que os fiéis possam ser por ele vencidos ou prostrados em sujeição. Sem dúvida que são por vezes consternados, todavia não são a tal ponto desalentados que não se refaçam; tombam pela violência dos golpes, porém em seguida se reerguem; são feridos, porém não mortalmente; enfim, assim aspiram em todo o decurso da vida que, no final, alcancem a vitória, o que, no entanto, não restrinjo a cada ato, individualmente.
Ora, sabemos que, por justa punição de Deus, Davi foi, por um tempo, deixado à mercê de Satanás para que, por impulso deste, recenseasse ao povo [2Sm 24.1; 1Cr 21.1]; nem tampouco deixa Paulo baldada a esperança de perdão, se porventura alguém se visse enredilhado nos laços do Diabo [2Tm 2.26]. Por isso, em outro lugar [Rm 16.20], quando diz: “Mas o Deus de paz em breve esmagará a Satanás debaixo de vossos pés”, o mesmo Paulo mostra que, nesta vida, em que se tem de lutar, a promessa supramencionada aqui só começa a cumprir-se depois que a luta cumprir-se plenamente. Na verdade, em nosso Cabeça esta vitória sempre subsistiu em plena medida, visto que o príncipe do mundo nada teve nele [Jo 14.30]. Em nós, porém, que somos seus membros, agora se mostra parcialmente. Contudo, haverá de consumar-se completamente quando, despojados de nossa carne, em relação à qual somos ainda susceptíveis à fraqueza, haveremos de ser cheios do poder do Espírito Santo.
Desse modo, onde se levanta e edifica o reino de Cristo, por terra desanda Satanás com seu poder, como o próprio Senhor o expressa [Lc 10.18]: “Vi a Satanás caindo do céu, como um raio.” Pois, com essa afirmação, Cristo confirma o que os apóstolos haviam relatado quanto ao poder de sua própria pregação. De igual forma [Lc 11.21]: “Quando um príncipe ocupa seu paço, todas as coisas que possui estão em paz; quando, no entanto, um mais forte sobrevém, ele é lançado fora” etc.
E para este fim, ao morrer, Cristo venceu a Satanás, que tinha “o poder da morte” [Hb 2.14] e de todas as suas hostes promoveu o triunfo, para que não possam fazer mal à Igreja. Doutra sorte, ela seria a cada instante reduzida cem vezes a nada pelo Diabo. Ora, uma vez que tal é nossa insuficiência e tal lhe é o furibundo poder, como, a não ser firmados na vitória de nosso Chefe, faríamos frente, sequer um mínimo, a seus multiformes e constantes ataques?
Portanto, Deus não permite o reinado de Satanás nas almas dos fiéis, mas só nas almas dos ímpios e incrédulos, a quem não tem por dignos de serem contados em sua igreja, os abandona para que sejam por ele governados. Pois diz-se que Satanás ocupa indubitavelmente a este mundo até que por Cristo seja dele expulso. De igual modo, ele cega a todos que não crêem no evangelho [2Co 4.4]. Também, ele leva adiante sua obra nos filhos contumazes [Ef 2.2]. E com razão, pois, todos os ímpios são vasos da ira [Rm 9.22]. Por isso, a quem se deveriam sujeitar, senão ao ministro da divina vingança? Finalmente, diz-se de todos os réprobos que são “filhos do Diabo” [Jo 8.44; 1Jo 3.8], porque assim como os filhos de Deus são conhecidos por portarem a imagem de Deus, do mesmo modo os demais, por portarem a imagem de Satanás, são considerados
com justiça filhos deste.

João Calvino

O poder do Diabo está sujeito à Autoridade de Deus


Quanto, porém, diz respeito à discórdia e luta que dissemos existir de Satanás com Deus, entretanto assim importa admitir que isto permanece estabelecido: que aquele nada pode fazer, a não ser que Deus o queira e consinta. Ora, lemos na história de Jó que aquele se apresenta diante de Deus para receber ordens, nem mesmo ousa aventurar-se a encetar alguma ação maligna, a não ser que a permissão seja impetradada [Jó 1.6; 2.1]. Assim também, quando Acabe tem de ser enganado, o Diabo toma a si a incumbência de ser um espírito de mentira na boca de todos os profetas, e o executa, comissionado pelo Senhor [1Rs 22.20]. Por esta razão, também
se diz provir do Senhor o espírito mau que atormentava a Saul, porque, por meio dele, como por um látego, eram punidos os pecados do ímpio rei [1Sm 16.14;18.10]. E, em outro lugar [Sl 78.49], está escrito que as pragas foram por Deus infligidas aos egípcios através de anjos maus. Em conformidade com esses exemplos particulares, Paulo atesta, generalizadamente [2Ts 2.9, 11], que o endurecimento dos incrédulos é obra de Deus, embora antes fosse dito ser ele operação de Satanás. Portanto, é evidente que Satanás está debaixo do poder de Deus e é de tal modo regido por seu arbítrio que se vê compelido a render-lhe obediência.
Conseqüentemente, quando dizemos que Satanás resiste a Deus e que as obras daquele são contrárias às obras deste, estamos afirmando, a um tempo, que esta incompatibilidade e este conflito dependem da permissão de Deus. Não estou falando agora em relação à vontade de Satanás, nem tampouco em referência a seu intento, mas apenas com respeito a sua maneira de atuar. Ora, uma vez que o Diabo é ímpio por natureza, está mui longe de ser propenso a obedecer à vontade divina; ao contrário, ele se inclina à contumácia e à rebelião.
Portanto, isto tem Satanás por si mesmo e por sua própria malignidade: ele se opõe a Deus com vil paixão e deliberado intento. Em virtude dessa depravação, é ele incitado à tentativa dessas coisas que julga serem especialmente contrárias a Deus. Como, porém, este o mantém amarrado e tolhido pelo freio de seu poder, ele leva a bom termo apenas aquelas coisas que lhe foram divinamente concedidas, e assim, queira ou não, obedece a seu Criador, porquanto é compelido a prestar-lhe serviço aonde quer que o mesmo o impelir.


João Calvino

A DEGENERESCÊNCIA DOS SERES DIABÓLICOS


Como, porém, o Diabo foi criado por Deus, lembremo-nos de que esta malignificência que atribuímos à sua natureza não procede da criação, mas da depravação. Tudo quanto, pois, tem ele de condenável, sobre si evocou por sua defecção e queda. Pois visto que a Escritura nos adverte, para que não venhamos, crendo que
ele recebeu de Deus exatamente o que é agora, a atribuir ao próprio Deus o que lhe é absolutamente estranho. Por esta razão, Cristo declara [Jo 8.44] que Satanás, quando profere a mentira, fala do que é próprio à sua natureza, e apresenta a causa: “porque não permaneceu na verdade.” De fato, quando estatui que Satanás não persistiu na verdade, implica em que outrora ele estivera nela; e quando o faz pai da mentira, lhe exime isto: que não se impute a Deus a falta da qual ele mesmo foi a causa. Mas, embora essas considerações fossem expressas de forma sucinta e não com tanta
clareza, no entanto são mais do que suficientes, para que de toda insinuação cavilosa se vindique a majestade de Deus. E que proveito há em conhecermos dos seres diabólicos mais ou para outro fim?
Murmuram alguns por que a Escritura não expõe, sistemática e distintamente, em muitas passagens, essa queda e sua causa, modo, tempo e natureza. Mas, uma vez que essas coisas nada têm a ver conosco, lhe pareceu melhor, ou não dizer absolutamente nada, ou que fossem tocadas apenas de leve, pois não foi digno do
Espírito Santo alimentar-nos a curiosidade com histórias fúteis, destituídas de proveito.
E vemos ter sido este o propósito do Senhor: nada ensinar em seus sagrados oráculos que não aprendêssemos para nossa edificação.
Portanto, para que nós próprios não nos detenhamos em demasia em coisas supérfluas, no que se refere à natureza dos seres diabólicos estejamos contentes com resumirmos a matéria assim: na criação original foram anjos de Deus; mas, em degenerando, perderam-se e se fizeram instrumentos de perdição a outros. Pois o
que era proveitoso de se conhecer, claramente se ensina em Pedro e Judas [2Pe 2.4; Jd 6]: “Deus não poupou”, dizem eles, “aos anjos que pecaram e não conservaram sua origem; ao contrário, abandonaram sua morada.” E Paulo, mencionando os anjos eleitos [1Tm 5.21], sem dúvida contrasta com eles tacitamente os réprobos.

João Calvino

A MALIGNIDADE DO DIABO


Além de tudo, isto nos deve incitar à perpetua luta contra o Diabo: que por toda parte lemos ser ele o adversário de Deus e nosso. Ora, se temos a glória de Deus no coração, como devêramos, então se nos impõe lutar com todas as forças contra esse que se empenha por sua extinção. Se formos animados a reter o reino de Cristo,
como se faz necessário, é preciso que travemos inconciliável luta com esse que conspira sua ruína. Por outro lado, se nos tange algum cuidado de nossa salvação, nem paz, nem tréguas devemos ter com esse que está continuamente a armar ciladas à sua destruição. Aliás, ele é descrito de tal forma em Gênesis, capítulo 3, onde afasta o homem da obediência que devia a Deus, para que, a um tempo, não só despoje a Deus da justa honra, mas ainda precipita o próprio homem na ruína. Também nos evangelistas, onde é designado de inimigo e se diz semear joio para corromper a semente da vida eterna [Mt 13.25, 28].
Em suma, em todos os seus feitos experimentamos o que dele testifica Cristo: foi homicida e mentiroso desde o início [Jo 8.44]. Pois combate a verdade de Deus com mentiras, obscurece a luz com trevas, enredilha a mente dos homens em erros, suscita ódios, contendas e incita lutas, tudo com este propósito: para que subverta o reino de Deus e submerja consigo os homens na perdição eterna. Donde se faz patente que ele é, por natureza, perverso, maligno e malévolo. Ora, suma impiedade deve haver neste espírito que está afeito a contrapor-se à glória de Deus e à salvação dos homens. João também dá a entender isso mesmo em sua Epístola [1Jo 3.8],
quando escreve que ele peca desde o princípio. Pois na verdade ele o entende como sendo o autor, guia e arquiteto de toda maleficência e iniqüidade.

João Calvino

O BATALHÃO DEMONÍACO É VASTO


Mas, para que sejamos mais despertados e mais incitados a levar a cabo isto, a Escritura declara que não um, ou outro, ou poucos inimigos, ao contrário, tropas numerosas são as hostes demoníacas que travam guerra conosco. Ora, não só lemos que Maria Madalena foi libertada de sete demônios dos quais era possuída [Mc 16.9; Lc 8.2], como também Cristo atesta ser isto comum: que, uma vez expulso um demônio, se outra vez lhe é propiciado novo espaço, ele toma consigo sete espíritos ainda piores e retorna à possessão desocupada [Mt 12.43]. Ademais, lemos que uma legião inteira se apoderou de um homem só. Aqui, portanto, somos ensinados que
temos de guerrear com infinita multidão de inimigos, para que não suceda que, desprezada a insignificância de seu número, mais remissos sejamos ao embate, ou, julgando que não raro nos é propiciada certa intermitência, nos entreguemos à inércia.
Assim, pois, muitas vezes a referência é a um Satanás ou Diabo, no número singular, denotando-se aquele império de iniqüidade que se opõe ao reino de justiça.
Pois da mesma forma que a Igreja e a sociedade dos santos têm a Cristo como Cabeça, assim também a facção dos ímpios, e a própria impiedade, nos são pintadas com seu príncipe, que nessa esfera exerce império absoluto. Razão pela qual se disso isto: “Apartai-vos, malditos, para o fogo eterno, que foi preparado para o Diabo e seus anjos” [Mt 25.41].

João Calvino

A LUTA CONTRA O DIABO E SUAS HOSTES


O que a Escritura ensina a respeito dos seres diabólicos, quase tudo inteiramente propende a isto: que sejamos solícitos em precaver-nos contra suas ciladas e maquinações; além disso, que nos provejamos destas armas que são bastante fortes e possantes para levar de vencida a esses inimigos assaz poderosos. Com efeito, quando Satanás é chamado o deus e príncipe deste mundo, quando é designado como o valente armado, o espírito a quem pertence o poder do ar, leão a rugir [2Co 4.4; Jo 12.31; Mt 12.29; Ef 2.2; 1Pe 5.8], estas representações não têm em vista outra coisa senão que sejamos mais cautos e vigilantes, ou, seja, mais preparados para combater, o que, por vezes, até se expressa em termos explícitos. Assim é que Pedro, após dizer que “o Diabo anda em derredor, como um leão a rugir, buscando a quem devorar” [1Pe 5.8], acrescenta logo a seguir esta admoestação: que o resistamos
vigorosamente na fé. E Paulo, onde advertiu que nossa luta não é com a carne e com o sangue, ao contrário, é com os príncipes do ar, com as potestades das trevas e com as hostes espirituais da impiedade, imediatamente ordena que cinjamos as armas que
estejam à altura de suster um embate tão renhido e tão perigoso [Ef 6.12-18].
Por essa razão, prevenidos também de que incessantemente nos ameaça o inimigo, e um inimigo prestíssimo em audácia, vigorosíssimo em forças, astutíssimo em estratagemas, infatigável em diligência e presteza, munidíssimo de todos os apetrechos
bélicos, habilíssimo na arte de guerrear, conduzamos tudo a este fim: que não nos deixemos sobrepujar por inércia ou pusilanimidade, mas, em contraposição, tendo o ânimo soerguido e despertado, finquemos pé a resistir; e uma vez que esta beligerância não se finda senão com a morte, nos exortemos à perseverança. Sobretudo, porém, cônscios de nossa insuficiência e obtusidade, invoquemos a assistência de Deus a nosso favor, nem tentemos coisa alguma, senão apoiados nele, visto que só a ele pertence o ministrar conselho, força, coragem e armas.


João Calvino

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Nossos olhos não devem desviar-se de Deus para os Anjos


Conseqüentemente, seja o que for que se diga do ministério dos anjos, dirijamos a este fim: que, levada de vencida toda falta de confiança, mais solidamente se firme nossa esperança em Deus. Pois estes meios de proteção nos foram preparados pelo Senhor para que não sejamos aterrorizados pela multidão de inimigos, como se sobre sua assistência houvesse ela de prevalecer. Ao contrário, refugiemo-nos nessa afirmação de Eliseu: “São mais os que são por nós do que os que são contra nós” [2Rs 6.16].
Portanto, quão lamentável é que sejamos alienados de Deus pelos anjos, os quais foram comissionados para isto: atestar-nos que sua assistência está bem presente conosco! Mas de Deus nos alienam, se não nos conduzem pela mão diretamente a ele, para que o contemplemos, invoquemos e proclamemos como nosso único ajudador; se não são por nós considerados como suas mãos, que não se movem a nenhuma ação salvo se ele os estiver a dirigir; se não nos conservam no único Mediador, Cristo, para que dependamos inteiramente dele, nele nos reclinemos, sejamos levados a ele e nele descansemos. Deve, pois, fixar-se e profundamente gravar-se em nossa mente o que se acha descrito na visão de Jacó [Gn 28.12]: que os anjos descem à terra aos homens, e dos homens sobem aos céus, por uma escada, sobre a qual se posiciona o Senhor dos Exércitos; com o quê se indica que, unicamente pela intercessão de Cristo, resulta que nos advenham as ministrações dos anjos, como ele próprio o afirma: “Vereis doravante os céus abertos e os anjos descendo ao Filho do Homem” [Jo 1.51]. Assim é que o servo de Abraão [Gn 24.7], confiando-se inteiramente à guarda de um anjo, nem por isso o invoca a fim de que o assista; ao contrário, firmado nessa injunção, derrama suas preces diante do Senhor e lhe roga que manifeste sua misericórdia para com Abraão. Ora, visto que Deus não os faz ministros de seu poder e bondade em tais moldes que partilhe com eles sua glória, assim também não nos promete sua assistência na ministração deles em relação a
nós em termos tais que dividamos nossa confiança entre eles e ele. Por isso devemos repelir essa filosofia platônica de buscar acesso em Deus por intermédio de anjos e de cultuá-los para este fim: que nos tornem Deus mais favorável, o que homens supersticiosos e curiosos desde o início tentaram impingir-nos à religião, e até hoje continuam agir assim.

João Calvino

O Ministério dos Anjos motivado pela necessidade Humana


Com efeito, deste perigo faremos bem em guardar-nos, se ponderarmos por que Deus costuma declarar seu poder, cuidar da segurança dos fiéis e comunicar-lhes as dádivas de sua beneficência por intermédio destes, e não de si diretamente, sem a
operação deles. Evidentemente não o faz por necessidade, como se não pudesse prescindir deles; porquanto, sempre que lhe apraz, deixando-os de lado, ele efetua sua obra unicamente por seu arbítrio, tão longe está que eles lhe sejam meio de aliviar alguma dificuldade.
Logo, Deus faz isso para consolo de nossa fraqueza, para que de modo algum careçamos de algo que valha, seja para elevar-nos o ânimo à boa esperança, seja para firmá-lo em segurança. Certamente que isto nos deveria ser mais que suficiente:
que o Senhor declara ser nosso protetor. Mas, uma vez que nos vemos rodeados de tantos perigos, de tantos malefícios, de tantos gêneros de inimigos, tal nos é a flacidez e fragilidade, que poderá acontecer, por vezes, que nos enchamos de inquietação, ou caiamos em desespero, a menos que, em conformidade com nossa capacidade, o Senhor nos faça apreender a presença de sua graça.
Por esta razão, não somente promete que haverá de cuidar de nós pessoalmente, mas ainda que dispõe de inumeráveis guardiães a quem já determinou para provernos a segurança, ou, seja, por todo o tempo em que estamos cercados da guarda e proteção destes, qualquer que seja o perigo que ameace, fomos postos além de toda
contingência do mal. De fato confesso que isto se nos converte em erro: que após essa inconfundível promessa acerca da proteção do Deus único, ainda volvamos o olhar em derredor, buscando donde nos venha o socorro. Mas, em vista disso, por sua imensurável clemência e boa vontade, o Senhor nos quer socorrer deste desvio,
não há por que negligenciarmos seu tão vultoso benefício.
Exemplo deste fato temo-lo no serviçal de Eliseu [2Rs 6.17] que, ao ver que o monte estava cingido em cerco pelo exército dos sírios, não se divisava qualquer meio de evasão, se transtornava de pavor, como se, quanto a si próprio e a seu senhor, tudo estivesse findado. Então Eliseu orou a Deus que lhe abrisse os olhos.
De repente ele percebe o monte repleto de cavalos e carros de fogo, isto é, de multidão de anjos, pelos quais haveria de ser guardado, juntamente com o Profeta; firmado por esta visão recobrou-se e pôde, de ânimo intrépido, desdenhar do inimigo, a cuja contemplação havia quase expirado.

João Calvino

IMPROCEDÊNCIA DA ANGELOLATRIA


Resta irmos de encontro à superstição que costuma mui freqüentemente insinuar-se sorrateira, quando se diz que os anjos são ministros e provedores de todo bem em relação a nós. Porque de repente nossa razão humana se inclina a pensar que se deve dar-lhes toda honra possível. Dessa forma ocorre que transferem para eles prerrogativas que são exclusivas de Deus e de Cristo. Assim, vemos que, em algumas épocas passadas, a glória de Cristo foi de muitas maneiras obscurecida, quando, contrariamente à Palavra de Deus, os anjos foram cumulados de honras imoderadas. Dificilmente há algum outro erro mais antigo que este dentre os que hoje combatemos.
Pois é também evidente que Paulo teve grande luta com alguns que exaltavam os anjos a tal ponto que reduziam a Cristo quase ao nível deles. Daqui, com tão grande solicitude insiste ele na Epístola aos Colossenses [1.16, 20] que não só se deve distinguir Cristo de todos os anjos, mas ainda que ele é o autor de tudo o que eles têm de bom, para que não aconteça que, deixando-o de parte nos volvamos para aqueles que não podem nem a si próprios bastar, ao contrário, tudo recebem da mesma fonte da qual nós mesmos recebemos.
Realmente, quando neles refulge o esplendor da majestade divina, nada nos é mais propenso do que, tomados de certo deslumbramento, nos prostrarmos em adoração, e conseqüentemente atribuir-lhes todas as coisas que só a Deus são devidas, o que até João, no Apocalipse, confessa haver-lhe acontecido. Mas, ao mesmo tempo, acrescenta que lhe foi respondido: “Vê, não o faças. Sou teu conservo. Adora a Deus”             [Ap 19.10; 22.8, 9].

João Calvino

A REALIDADE PESSOAL DOS ANJOS


Contudo, o que certos homens irrequietos põem em dúvida, deve-se ter por certo que os anjos são “espíritos ministrantes” [Hb 1.14], de cujo serviço Deus se serve para a proteção dos seus e mediante os quais ora dispensa seus benefícios entre os homens, ora também executa suas demais obras. De fato foi essa a opinião dos saduceus outrora, de que por anjos nada se designa senão os impulsos que Deus inspira aos homens, ou essas expressões que manifesta de seu poder. Mas, tantos testemunhos da Escritura contradizem esse desvario, que causa surpresa que fosse tolerado nesse povo ignorância tão crassa.
Omitindo, pois, as referências que acima citei, nas quais se mencionam “milhares” [Ap 5.11] e “legiões” [Mt 26.53] de anjos, onde lhes é atribuído regozijo [Lc 15.10], onde se diz que com as mãos sustentam os fiéis [Sl 91.12; Mt 4.6; Lc 4.10, 11], que conduzem suas almas ao descanso [Lc 16.22], que contemplam a face do
Pai [Mt 18.10], e há outras como essas das quais se evidencia, com muita clareza, que de fato eles são espíritos de natureza real.
Ora, por mais que se procure torcer, será necessário entender assim o que Estêvão e Paulo dizem [At 7.53; Gl 3.19]: que a lei foi trazida pela mão de anjos; e Cristo: que os eleitos, após a ressurreição, haverão de ser semelhantes aos anjos [Mt 22.30]; que o dia do juízo, realmente, não é conhecido nem mesmo dos anjos [Mt 24.36]; que então ele haverá de vir com os santos anjos [Mt 25.31; Lc 9.26]. De
igual modo, quando, perante Cristo e seus anjos eleitos, Paulo ajuramenta a Timóteo a que guarde seus preceitos [1Tm 5.21], denota não qualidades ou inspirações sem substância, mas espíritos reais. Nem doutra sorte é procedente o que se lê na Epístola aos Hebreus: que Cristo foi feito mais excelente que os anjos [Hb 1.4], que não foi a eles sujeito o orbe das terras [Hb 2.16], a não ser que entendamos serem eles espíritos bem-aventurados, aos quais estas comparações se adequam perfeitamente.
E o próprio autor da Epístola se faz mais explícito quando, a um tempo, reúne no reino de Deus as almas dos fiéis e dos santos anjos [Hb 12.22]. Além disso, já nos referimos que os anjos das crianças sempre contemplam a face de Deus [Mt 18.10]; que por sua proteção somos nós defendidos [Lc 4.10, 11]; que se regozijam acerca de nossa salvação [Lc 15.10]; que se maravilham ante a
múltipla graça de Deus na Igreja [1Pe 1.12]; que estão sujeitos a Cristo, como o Cabeça [Hb 1.6]. À mesma conclusão conduz o fato de que falaram com eles, foram até mesmo por eles hospedados. E o próprio Cristo, em função do primado que exerce na pessoa do Mediador, é chamado Anjo [Ml 3.1]. Pareceu-me bem abordar ligeiramente este fator, com vistas a prevenir os símplices
contra essas estultas e absurdas cogitações que, suscitadas por Satanás há muitos séculos, de quando em quando novamente repontam.

João Calvino

HIERARQUIA, NÚMERO E FORMA DOS ANJOS


Quanto, porém, ao número e hierarquia dos anjos, veja-se que fundamento têm aqueles que ousam determiná-los. Reconheço que Miguel é chamado “o grande príncipe” em Daniel [12.1] e “o arcanjo que, com uma trombeta, convocará os homens ao juízo. Quem, entretanto, poderá daí estabelecer graus de honra entre os anjos, distinguir a cada um por suas insígnias específicas, assinalar a cada um o lugar e a posição? Ora, tanto os dois nomes que constam nas Escrituras, Miguel [Dn 10.21] e Gabriel [Dn 8.16; Lc 1.19, 26], quanto um terceiro, Rafael, se queiras acrescentar da história de Tobias, podem, do próprio significado, parecer aplicados a anjos em função da insuficiência de nossa capacidade, se bem que eu prefiro deixar isso em aberto.
Quanto ao número, ouvimos da boca de Cristo [Mt 26.53]: “muitas legiões”; de Daniel [7.10]: “muitas miríades”; o serviçal de Eliseu viu carros cheios [2Rs 6.17]; e quando se diz que acampam ao redor dos que temem a Deus, a alusão é a uma grande multidão86 [Sl 34.7]. É certo que os espíritos carecem de forma. E todavia, em razão da limitada medida de nosso entendimento, a Escritura, sob o nome de querubins e serafins, não em vão nos pinta anjos alados, para que não tenhamos dúvida de que sempre haverão de estar presentes para, com incrível celeridade, trazer-nos auxílio, tão logo as circunstâncias o exijam, como se, com a costumeira velocidade, voasse para nós como um relâmpago despedido do céu.
Além disso, seja o que for que se indague de um e outro destes dois aspectos: número e escalonamento, creiamos ser desse gênero de mistérios cuja plena revelação se dará no último dia. Conseqüentemente, lembremo-nos de que devemos guardar-nos, seja de curiosidade exagerada em perquirir, seja de excessiva ousadia em falar.

João Calvino

Precária é a base para afirmar-se a realidade de Anjo da Guarda Individual


Por outro lado, não ousaria afirmar como certo, se a cada fiel, individualmente, foi ou não designado um anjo específico para sua defesa. Evidentemente, quando Daniel faz referência ao anjo dos persas e ao anjo dos gregos está dizendo que certos anjos são destacados como guardiões a reinos e províncias. Também Cristo,
quando diz que os anjos das crianças sempre contemplam a face do Pai [Mt 18.10], dá a entender que há certos anjos a quem lhes foi confiada a segurança. Mas disto não sei se deva concluir-se por certo que incumbe não a um só anjo o cuidado de cada um de nós, mas, antes, que todos, em um consenso único, vigiam por nossa
segurança. Ora, é de todos os anjos em conjunto que se diz que se regozijam mais por um pecador voltado ao arrependimento do que por noventa e nove justos que tenham persistido na justiça [Lc 15.7]. Também de muitos anjos se diz que conduziram a alma de Lázaro ao seio de Abraão [Lc 16.22]. Aliás, não em vão mostra Eliseu
a seu serviçal tantos carros de fogo [2Rs 6.17], que lhe haviam sido particularmente destinados.
Há uma passagem [At 12.15] que, confirmando isso, parece um pouco mais clara que outras. Isto é, quando Pedro, retirado do cárcere, batia aos portais da casa em que os irmãos se haviam congregado, como não pudessem supor que fosse ele, diziam que era seu anjo. Isto lhes vem à mente como sendo uma concepção generalizada de que aos fiéis, individualmente, se designaram anjos como guardiões pessoais. Se bem que aqui se pode também replicar que nada nos impede que entendamos a qualquer um dentre os anjos, a quem o Senhor houvesse então confiado a proteção de Pedro, e não obstante nem por isso lhe seria guarda perpétuo, tal como, popularmente, se imagina que foram designados a cada pessoa, como se fossem gênios diversos, dois anjos, um bom e um mau.
Entretanto, não vale a pena investigar ansiosamente o que não nos vem muito ao caso saber. Ora, se porventura isto não satisfaz a alguém, que todas as ordens da milícia celestial velam por sua segurança, não vejo que proveito possa derivar disto, ou, seja, vir a saber que um anjo lhe é particularmente outorgado por guarda pessoal.
Aliás, grande agravo fazem a si próprios e a todos os membros da Igreja quantos restringem a um único anjo esse cuidado que Deus exerce em relação a cada um de nós, como se fosse em vão a promessa relativa a essas forças auxiliares, cercados e assistidos pelas quais, por todos os lados, lutemos mais displicentemente.


João Calvino

O Ministério dos Anjos a velarem de contínuo pela proteção dos Crentes


Aquilo, porém, que à nossa consolação e ao fortalecimento de nossa nos podia ser de particular relevância, sobremodo a Escritura insiste em ensinar isto, a saber, que os anjos são despenseiros e ministradores da divina beneficência para conosco. E por isso a Escritura indica que eles montam guarda por nossa segurança,
assumem nossa defesa, dirigem nossos caminhos, exercem solicitude para que não nos aconteça algo de adverso.
Universais em teor são afirmações como estas, que se aplicam, em primeiro plano, a Cristo, Cabeça da Igreja, depois a todos os fiéis: “A seus anjos deu ordens a teu respeito, para que te guardem em todos os teus caminhos; nas mãos te susterão, para não tropeçares em alguma pedra” [Sl 91.11, 12]. De igual modo: “O Anjo do Senhor se posta ao redor daqueles que o temem e os livra” [Sl 34.7]. Com essas afirmações Deus evidencia que delega a seus anjos a proteção daqueles a quem houve por bem fossem guardados. Em conformidade com este princípio, o Anjo do Senhor consola a fugitiva Hagar e lhe ordena que se reconcilie com sua senhora (Gn
16.9). Abraão promete a seu servo que um anjo lhe haveria de ser o guia na jornada [Gn 24.7]. Jacó, na bênção de Efraim e Manassés [Gn 48.16], ora para que o Anjo do Senhor, através de quem fora isentado de todo mal, os faça prosperar. Assim, um anjo foi designado para proteger o acampamento do povo israelita [Ex 14.19; 23.20], e sempre que Deus quis redimir a Israel da mão dos inimigos, suscitou libertadores através do ministério dos anjos [Jz 2.1; 6.11; 13.9]. Assim, finalmente, e para que não se faça necessário mencionar mais exemplos, os anjos ministraram a Cristo [Mt 4.11] e lhe foram presentes em todas as angústias [Lc 22.43]; às mulheres anunciaram sua ressurreição; aos discípulos, sua gloriosa vinda [Mt 28.5; Lc 24.5; At 1.10].
E assim, para que desempenhem este encargo de nossa proteção, lutam contra o Diabo e todos os nossos inimigos, e executam a vingança de Deus contra aqueles que nos são inimigos. Assim lemos que para livrar Jerusalém do cerco o Anjo de Deus exterminou, em uma noite, a cento e oitenta e cinco mil no acampamento do rei da Assíria [2Rs 19.35; Is 37.36].

João Calvino

Funções e Designativos dos Anjos


Que os anjos são espíritos celestiais, de cujo ministério e serviço Deus se utiliza para efetuar tudo que decretou, isso se lê em muitos lugares na Escritura. Donde também lhes foi atribuído este designativo, visto que, para manifestar-se aos homens, Deus os emprega como emissários intermediários.
Por uma razão semelhante, foram tomados também os demais designativos pelos quais são assinalados. Denominam-se exércitos porque, como elementos de sua guarda, rodeiam a seu Príncipe, adornam-lhe a majestade e a tornam ostensiva, e como soldados estão sempre atentos ao sinal de seu comandante, e desse modo
estão preparados e prontos para cumprir-lhe as ordens, de sorte que, tão logo ele lhes acena, à ação se preparam, ou, antes, entram em ação. Como, para proclamar lhe a magnificência, os demais profetas pintam essa representação do trono de Deus, porém Daniel o faz sobremaneira [7.10], onde menciona que se puseram de pé mil
milhares e dez vezes mil miríades de anjos, quando Deus subiu a seu tribunal.
Uma vez que também, por meio deles, o Senhor expressa e manifesta maravilhosamente a força e a punjança de sua mão, daí os anjos serem chamados poderes. Porque, acima de tudo, através deles Deus exerce e administra sua soberania no universo, por isso ora são chamados principados, ora potestades, ora domínios [1Co 15.24; Ef 1.21; Cl 1.16].
Finalmente, porque neles, de certo modo, reside a glória de Deus, por esta razão são também chamados tronos, visto que, em referência a esta última designação, prefiro nada afirmar, já que interpretação diferente se adequa bem, ou igualmente, ou ainda melhor. De fato, omitido este designativo, o Espírito Santo se serve não poucas vezes daqueles precedentes para exalçar a dignidade do ministério angélico.
Pois, nem é razoável que sem honra se releguem estes instrumentos, mercê dos quais Deus exibe, de modo especial, a presença de sua soberana majestade. Além disso, também à vista disso, não uma vez só, os anjos são chamados deuses, visto que, em seu ministério, como em um espelho, em certa medida a Deidade nos é representada. Ora, ainda que a mim não me desagrade o fato de que os escrito res antigos interpretam que, onde a Escritura registra que o Anjo de Deus apareceu a Abraão [Gn 18.1] a Jacó [Gn 32.1, 28], a Moisés e outros [Js 5.14; Jz 6.12; 13.9,
22], esse Anjo era Cristo; contudo, mais freqüentemente, onde se faz menção de todos os anjos, este designativo, deuses, lhes é conferido. Tampouco deve isso parecer-nos coisa surpreendente, porque, se a príncipes e prepostos se outorga esta honra [Sl 82.6], porquanto, em sua função, fazem as vezes de Deus, que é o Supremo Rei e Juiz, muito maior razão a que seja conferida aos anjos, em quem a efulgência da glória divina esplende muito mais copiosamente.

João Calvino

quinta-feira, 24 de maio de 2018

EM MATÉRIA DE ANGELOLOGIA, DEVE-SE BUSCAR SOMENTE O TESTEMUNHO DA ESCRITURA


Que os anjos, afinal, são também criaturas suas deve estar fora de discussão, já que são ministros de Deus, ordenados para executar-lhe as determinações. Suscitar contenda quanto ao tempo ou à ordem em que foram criados, porventura não é prova mais de obstinação do que de diligência? Moisés registra que foi concluída a terra e concluídos os céus, com todo o exército deles [Gn 2.1]. Que vale ansiosamente indagar em que dia, à parte das estrelas
e dos planetas, também começaram a existir os demais exércitos celestes mais recônditos, como os anjos? Para não alongar-me em demasia, lembremo-nos, neste ponto, com toda sobriedade, de sorte que, em se tratando de coisas obscuras, não falemos, ou sintamos, ou sequer almejemos saber outra coisa senão aquilo que nos
é ensinado na Palavra de Deus. Ademais, impõe-se ainda que no exame da Escritura nos atenhamos a buscar e meditar continuamente aquelas coisas que dizem respeito à edificação, nem cedamos à curiosidade, ou à investigação de coisas inúteis. E
visto que o Senhor nos quis instruir não em questões frívolas, mas na sólida piedade, no temor de seu nome, na verdadeira confiança, nos deveres da santidade, contentemo-nos com este conhecimento.
Portanto, se visamos ao reto saber, devemos dar de mão a essa – coisas vãs; fatuidades] que, à parte da Palavra de Deus e por indivíduos ociosos, são ensinadas acerca da natureza, das ordens, do elevado número de anjos. Sei que essas coisas são mais avidamente preferidas por muitos, e para eles são de maior prazer do que aquelas que lhes são postas para o uso de cada dia. Mas,
se o fato de sermos discípulos de Cristo não nos envergonha, que também não nos envergonhe seguirmos esta norma que ele próprio prescreveu. Assim sucederá que, contentes com sua docência, não só nos abstenhamos dessas especulações extremamente fúteis de que ele nos retrai, mas até as aborreçamos.
Ninguém negará que esse Dionísio, não importa quem ele tenha sido, discutira com sutileza e argúcia sobre muitas coisas em sua obra A Hierarquia Celeste. Se no entanto alguém a examina mais detidamente, verificará que na parte absolutamente maior não passa de mero palavreado. Ao teólogo, porém, o propósito não é deleitar os ouvidos com argumentação loquaz, mas firmar as consciências, ensinando o verdadeiro, o certo, o proveitoso. Se lês tal livro, pensas que um homem caído do céu está mencionando não coisas que aprendeu, mas o que viu com os olhos.
Paulo, entretanto, que fora arrebatado além do terceiro céu, não só se absteve de fazer tais referências, mas, ao contrário, até deu testemunho de que não é lícito ao homem contar os segredos que vira. Portanto, uma vez descartado esse frívolo saber, consideremos à luz do simples ensino da Escritura o que o Senhor quis que o
soubéssemos acerca de seus anjos.

João Calvino

OS ANJOS SÃO CRIATURAS DE DEUS, QUE É DE TUDO O SENHOR


Antes, porém, de começar a tratar mais exaustivamente da natureza do homem, convém inserir algo a respeito dos anjos; porquanto, visto que, acomodando-se à insofisticada mentalidade das pessoas simples, Moisés não menciona na história da Criação outras obras de Deus, senão aquelas que a nossos olhos se ostentam; entretanto, quando em seguida introduz os anjos na condição de ministros de Deus, podese facilmente concluir que aquele a quem devotam sua atividade e misteres é seu Criador. Portanto, embora Moisés, falando em termos comuns, a partir dos primeiros
rudimentos, não enumere imediatamente os anjos entre as criaturas de Deus, contudo nada impede que, lúcida e explicidamente, refiramos a respeito deles o que a Escritura ensina reiteradamente em outras passagens; porquanto, se ansiamos em conhecer as obras de Deus, de modo algum se deve omitir tão preclaro e nobre
exemplar. Acresce que, para a refutação de muitos erros, mui necessária é esta parte da doutrina.
A preeminência da natureza angélica de tal modo tem obcecado a mente de muitos, que chegaram a pensar que se lhes faz agravo, se fossem, por assim dizer, forçados em sua condição de criaturas a sujeitar-se à autoridade do Deus único. E por isso chegaram a atribuir-lhes certa divindade.
Surgiu também Mani, com sua seita, que engendrou para si dois princípios absolutos: Deus e o Diabo. E a Deus, naturalmente, atribuía a origem das coisas boas, mas as chamadas naturezas más ele as atribuía, por autor, ao Diabo. Se desvario como esse nos mantivesse enredilhada a mente, não se poderia dar a Deus a glória
que ele merece na criação do mundo. Ora, uma vez que, por assim dizer, nada seja mais próprio de Deus que a eternidade, e a auvtousi,a [autousíâ], isto é, a existência própria, aqueles que atribuem isto ao Diabo porventura não estão, de certo modo, a
adorná-lo com o título da divindade? Onde, pois, a onipotência de Deus, se ao Diabo se concede tal poder que, contra a vontade de Deus e a despeito de sua oposição, leve a bom termo tudo quanto deseja?
Mas o único fundamento que os maniqueus têm – não ser próprio atribuir-se a um Deus bom a criação de qualquer coisa má –, isto nem de leve fere a fé ortodoxa, a qual não admite que no universo inteiro haja alguma natureza má, porquanto nem a depravação e malignidade, seja do homem, seja do Diabo, ou os pecados que daí
nascem, provêm da natureza, mas da corrupção da natureza; nem de início há absolutamente nada que exista em que Deus não haja estampado o selo, tanto de sua sabedoria, quanto de sua justiça.
Portanto, para que se vá de encontro a essas cogitações pervertidas, é necessário elevar a mente mais alto do que nossos olhos possam penetrar. É provável que para este propósito, onde no Credo Niceno Deus é chamado o Criador de todas as coisas,
que também se mencionem expressamente as coisas invisíveis. Contudo, nesta questão de anjos, deve manter-se a medida que a norma da piedade prescreve, para que não aconteça que, especulando além do que se recomenda, os leitores vagueiem
longe da simplicidade da fé. Porque, sendo que o Espírito Santo sempre nos ensina o que nos convém, e as coisas que são de pouca importância para nossa edificação, ou as omite totalmente, ou as toca brevemente e como que de passagem, é também
dever nosso ignorar voluntariamente as coisas que não granjeiam proveito algum.

João Calvino

quarta-feira, 23 de maio de 2018

A Bondosa providência de Deus para com o Homem se acha espelhada na Obra dos Seis Dias da Criação


Ao mesmo intento procede o que Moisés narra: a obra de Deus na criação foi consumada não em um momento, mas em seis dias. Ora, também por esta circunstância somos atraídos para o Deus único, que distribuiu sua obra em seis dias a fim de que não nos resultasse enfadonho ocupar-nos em sua meditação todo o curso de nossa vida. Pois, ainda que nossos olhos, para qualquer parte que se volvam, são compelidos a fixar-se na contemplação das obras de Deus, vemos no entanto quão inconstante nos é a atenção, e se nos tangem quaisquer pensamentos piedosos, quão de pronto se evolam totalmente. Aqui também, até que, sujeita à obediência da fé, aprende a cultivar esse repouso a que nos convida a santificação do sétimo dia, vocifera a razão humana, como se tais passos na obra da criação fossem inconsistentes com o poder de Deus.
Mas é preciso considerar diligentemente na própria ordem das coisas criadas o amor paternal de Deus para com o gênero humano, visto que não criou Adão antes que enchesse o mundo de toda abundância de coisas boas. Ora, se o houvesse colocado em uma terra ainda então estéril e vazia, se lhe houvesse dado vida antes da
luz, teria parecido interessar-se bem pouco por seu bem-estar. Ora, quando antes de criá-lo dispôs os movimentos do sol e dos astros para o uso humano, encheu de seres vivos a terra, as águas, o ar, produziu fartura de todos os frutos que fornecessem alimentos, assumindo o cuidado de um chefe de família provido e zeloso, mostrou Deus sua mirífica bondade para conosco. Se alguém mais atentamente pondere em si aquilo que estou apenas ligeiramente provando, se lhe evidenciará que Moisés foi segura testemunha e arauto do Deus Criador, uno e único.
Deixo de referir o que já expus, que ali não se faz apenas consideração da essência pura de Deus, mas ainda que se nos apresentam sua eterna Sabedoria e Espírito, para que não sonhemos outro Deus além daquele que se queira seja reconhecido nessa imagem expressa.


João Calvino

O Conhecimento de Deus à base da Criação e o despautério da especulatividade


Embora, com procedente razão, censure Isaías [40.21] a obtusidade dos adoradores de falsos deuses, porquanto não haviam aprendido sobre o Deus verdadeiro à luz dos fundamentos da terra e do âmbito dos céus, visto nos ser tão profunda a lerdeza e entorpecimento do intelecto, foi necessário, para que os fiéis não aprendessem as
vãs criações dos povos, ser-lhes pintado mais expressamente o Deus verdadeiro.
Pois, visto que a maneira mais aceitável usada pelos filósofos para explicar o que é Deus, a saber, que é a alma do mundo, que não passa de uma fútil sombra, é conveniente que o conheçamos bem mais intimamente, a fim de que não andemos sempre vacilando entre dúvidas. Portanto, quis ele se fizesse patente a história da criação, apoiada à qual a fé da Igreja não buscasse a outro Deus, senão aquele que foi por Moisés proposto como o Artífice e Fundador do universo. Aí foi, primeiramente, computado o tempo, de sorte que, mediante a série contínua dos anos, os fiéis chegassem
à origem primordial do gênero humano e de todas as coisas. Este conhecimento é especialmente insigne não apenas para que se vá de encontro às monstruosas fábulas que estiveram em voga outrora no Egito e em outras regiões da terra, mas também para que, conhecido o começo do mundo, luza mais esplendorosamente
a eternidade de Deus e mais nos arrebate à sua admiração.
Realmente não nos deve abalar essa profana teimosia, de que é surpreendente por que não ocorreu à mente de Deus criar mais cedo o céu e a terra, antes, ocioso, tenha ele deixado escoar-se imenso espaço de tempo, uma vez que poderia tê-los feito muitíssimos milênios antes, quando a duração do mundo, a vergar para seu
fim derradeiro, não haja ainda chegado a seis mil anos. Ora, por que haja Deus protelado por tanto tempo, não nos é próprio indagar, nem conveniente, porquanto, se a mente humana se empenha em chegar até esse ponto, cem vezes pelo caminho desfalecerá; nem mesmo seria de proveito conhecer o que o próprio Deus, para provar-nos a sobriedade da fé, achou por bem nos fosse escondido. E, judiciosamente, como em galhofa lhe perguntasse certo individuo abelhudo o que Deus estivera fazendo antes de o mundo ser criado, respondeu aquele piedoso ancião: a construir o inferno para os curiosos. Que esta advertência, não menos grave que severa,
contenha a desbragada tendência que a muitos excita, até mesmo impele, a pervertidas e danosas especulações!
Finalmente, lembremo-nos de que esse Deus invisível, e de quem incompreensível é a sabedoria, o poder e a justiça, nos põe diante a história de Moisés como um espelho no qual reflete sua viva imagem. Pois, assim como os olhos, ou toldados pela decrepitude da velhice, ou entorpecidos de outro defeito qualquer, nada percebem distintamente, a menos que sejam ajudados por óculos, de igual modo nossa insuficiência é tal que, a não ser que a Escritura nos dirija na busca de Deus, de pronto nos extraviamos totalmente. Aqueles, porém, que cedem indulgentes à sua
petulância, uma vez que são agora debalde avisados, bem tarde, em deplorável ruína,
sentirão quão preferível lhes teria sido, com toda reverência, mirar os secretos conselhos de Deus a vomitarem blasfêmias com que obscureçam os céus.
E Agostinho se queixa, com justa razão, de que se faz ofensa a Deus quando se postula das coisas causa superior à sua vontade.80 O mesmo Agostinho sabiamente adverte, em outro lugar, que não menos errôneo é suscitar-se perquirição acerca das imensuráveis extensões dos tempos e dos espaços. Por certo que, por mais vastamente que se estenda o circuito dos céus, entretanto algum limite, lhe dá. Ora, se alguém discutir com Deus, dizendo que o vácuo supera os céus cem vezes mais, porventura tal petulância não será detestável a todos os fiéis? No mesmo tresloucado desvario tripudiam os que apostrofam o ócio de Deus, pelo fato de que, segundo seu modo de julgar, não criou o universo incontáveis séculos antes. Para que à própria cupidez satisfaçam ao capricho, ousam passar além do mundo, como se, na verdade, na tão vasta circunferência do céu e da terra não se nos deparem elementos
assaz suficientes que, mercê de seu inestimável fulgor, nos absorvam todos os sentidos; como se dentro de seis mil anos Deus na haja produzido testemunhos mais do que suficientes em cuja constante meditação deva exercitar-se nossa mente.
Portanto, permaneçamos, de bom grado, encerrados dentro destes limites aos quais Deus nos quis circunscrever e como que constringir-nos a mente, para que não se extravie na desmedida ânsia de divagar.


João Calvino