Entretanto,
da mesma forma que acima refutamos aquela vã filosofia acerca dos santos anjos,
a qual ensina que eles nada mais são do que inspirações ou
impulsos bons que Deus desperta na mente dos homens, assim também, neste ponto,
deve-se refutar aqueles que desdenham dizendo que os seres
diabólicos nada mais são do
que maus
sentimentos ou distúrbios que nossa carne suscita. Isso será bem mais fácil de
refutar, porque há inumeráveis testemunhos da Escritura sobre esta matéria.
Em primeiro
lugar, quando são chamados espíritos imundos e anjos apóstatas [Mt
12.43; 2Pe 2.4; Jd 6], que decaíram de sua condição original, os próprios
termos expressam suficientemente não impulsos ou sentimentos da mente,
mas, antes, que são chamados: mentes ou espíritos dotados de
sensibilidade e entendimento. Semelhantemente quando, tanto por Cristo
quanto por João, os filhos de Deus são comparados com os filhos do Diabo
[Jo 8.44; 1Jo 3.10], não seria porventura inepta a comparação, se o
termo Diabo nada designasse senão inspirações más? E João acrescenta
algo ainda mais pertinente: que o Diabo peca desde o princípio [1Jo 3.8].
De modo
semelhante, quando Judas [v. 9] apresenta o Arcanjo Miguel a contender com o
Diabo, certamente que o anjo bom se opõe a um mau e rebelde. Ao que isto se harmoniza
bem com o que se lê na história de Jó: que Satanás compareceu diante de Deus
com os santos anjos [Jó 1.6; 2.1].
De todas,
porém, as mais explícitas são aquelas passagens que fazem menção do castigo que
os demônios começam a sentir do juízo de Deus, e haverão de sentir principalmente
na ressurreição. “Filho de Davi, por que vieste atormentar-nos antes do tempo?”
[Mt 8.29]. Também: “Ide-vos, malditos, para o fogo eterno que foi preparado para
o Diabo e seus anjos” [Mt 25.41]. Ainda: “Se não poupou aos próprios anjos,
mas, encerrados em cadeias, os lançou nas trevas para que fossem
reservados à condenação
eterna” etc. [2Pe 2.4]. Quão improcedentes haveriam de ser estas expressões:
que os seres diabólicos foram destinados ao juízo eterno; que fogo lhes foi
preparado; que mesmo agora são atormentados e torturados pela glória de Cristo,
se simplesmente não existissem nenhum diabo? Mas, uma vez que esta matéria não
requer discussão entre aqueles que têm fé na Palavra do Senhor, enquanto entre
esses especuladores fúteis pouco há de proveito nos testemunhos da Escritura,
aos quais nada apraz senão o que é novidade, a mim
me parece
que levei a bom termo o que me propus, isto é, que as mentes
piedosas tenham sido instruídas contra desvarios desse gênero, com que homens
irrequietos perturbam a si próprios e a outros mais simplórios que
eles. Além disso, também valeu a pena abordar isto, para que os que estão
enredilhados nesse erro, enquanto pensam que nenhum inimigo têm, não se
tornem mais remissos e improvidentes a resistir.
João
Calvino