Contudo, o
que certos homens irrequietos põem em dúvida, deve-se ter por certo que os
anjos são “espíritos ministrantes” [Hb 1.14], de cujo serviço Deus se serve para
a proteção dos seus e mediante os quais ora dispensa seus benefícios entre os homens,
ora também executa suas demais obras. De fato foi essa a opinião dos saduceus
outrora, de que por anjos nada se designa senão os impulsos que
Deus inspira aos homens, ou essas expressões que manifesta de seu poder. Mas,
tantos testemunhos da Escritura contradizem esse desvario, que causa surpresa
que fosse tolerado nesse povo ignorância tão crassa.
Omitindo,
pois, as referências que acima citei, nas quais se mencionam “milhares” [Ap
5.11] e “legiões” [Mt 26.53] de anjos, onde lhes é atribuído regozijo [Lc 15.10],
onde se diz que com as mãos sustentam os fiéis [Sl 91.12; Mt 4.6; Lc 4.10, 11],
que conduzem suas almas ao descanso [Lc 16.22], que contemplam a face do
Pai [Mt
18.10], e há outras como essas das quais se evidencia, com muita clareza, que
de fato eles são espíritos de natureza real.
Ora, por
mais que se procure torcer, será necessário entender assim o que Estêvão
e Paulo dizem [At 7.53; Gl 3.19]: que a lei foi trazida pela mão de anjos; e Cristo:
que os eleitos, após a ressurreição, haverão de ser semelhantes aos anjos [Mt 22.30];
que o dia do juízo, realmente, não é conhecido nem mesmo dos anjos [Mt 24.36];
que então ele haverá de vir com os santos anjos [Mt 25.31; Lc 9.26]. De
igual modo,
quando, perante Cristo e seus anjos eleitos, Paulo ajuramenta a Timóteo a que
guarde seus preceitos [1Tm 5.21], denota não qualidades ou inspirações sem
substância, mas espíritos reais. Nem doutra sorte é procedente o que se
lê na Epístola aos Hebreus: que Cristo foi feito mais excelente que os
anjos [Hb 1.4], que não foi a eles sujeito o orbe das terras [Hb 2.16], a não
ser que entendamos serem eles espíritos bem-aventurados, aos quais estas
comparações se adequam perfeitamente.
E o próprio
autor da Epístola se faz mais explícito quando, a um tempo, reúne no reino de
Deus as almas dos fiéis e dos santos anjos [Hb 12.22]. Além disso, já nos
referimos que os anjos das crianças sempre contemplam a face de Deus [Mt
18.10]; que por sua proteção somos nós defendidos [Lc 4.10, 11]; que se
regozijam acerca de nossa salvação [Lc 15.10]; que se maravilham ante a
múltipla
graça de Deus na Igreja [1Pe 1.12]; que estão sujeitos a Cristo, como o Cabeça
[Hb 1.6]. À mesma conclusão conduz o fato de que falaram com
eles, foram até mesmo por eles hospedados. E o próprio Cristo, em
função do primado que exerce na pessoa do Mediador, é chamado Anjo [Ml 3.1]. Pareceu-me
bem abordar ligeiramente este fator, com vistas a prevenir os
símplices
contra
essas estultas e absurdas cogitações que, suscitadas por Satanás há já muitos
séculos, de quando em quando novamente repontam.
João
Calvino