Quanto,
porém, ao número e hierarquia dos anjos, veja-se que fundamento têm aqueles
que ousam determiná-los. Reconheço que Miguel é chamado “o grande príncipe” em Daniel [12.1] e “o arcanjo que, com uma trombeta, convocará
os homens ao juízo. Quem, entretanto, poderá daí estabelecer graus de honra
entre os anjos, distinguir a cada um por suas insígnias específicas,
assinalar a cada um o lugar e a posição? Ora, tanto os dois nomes que constam
nas Escrituras, Miguel [Dn 10.21] e Gabriel [Dn 8.16; Lc 1.19, 26], quanto um
terceiro, Rafael, se queiras acrescentar da história de Tobias, podem,
do próprio significado, parecer aplicados a anjos em função da
insuficiência de nossa capacidade, se bem que eu prefiro deixar isso em aberto.
Quanto ao
número, ouvimos da boca de Cristo [Mt 26.53]: “muitas legiões”; de Daniel
[7.10]: “muitas miríades”; o serviçal de Eliseu viu carros cheios [2Rs 6.17]; e
quando se diz que acampam ao redor dos que temem a Deus, a alusão é a uma grande
multidão86 [Sl 34.7]. É certo que os espíritos carecem de forma. E todavia, em
razão da limitada medida de nosso entendimento, a Escritura, sob o nome de querubins
e serafins, não em vão nos pinta anjos alados, para que não tenhamos dúvida de
que sempre haverão de estar presentes para, com incrível celeridade, trazer-nos
auxílio, tão logo as circunstâncias o exijam, como se, com a costumeira
velocidade, voasse para nós como um relâmpago despedido do céu.
Além disso,
seja o que for que se indague de um e outro destes dois aspectos: número e
escalonamento, creiamos ser desse gênero de mistérios cuja plena revelação
se dará no último dia. Conseqüentemente, lembremo-nos de que devemos guardar-nos,
seja de curiosidade exagerada em perquirir, seja de excessiva ousadia em
falar.
João
Calvino