Com efeito,
deste perigo faremos bem em guardar-nos, se ponderarmos por que Deus costuma
declarar seu poder, cuidar da segurança dos fiéis e comunicar-lhes as dádivas
de sua beneficência por intermédio destes, e não de si diretamente, sem
a
operação
deles. Evidentemente não o faz por necessidade, como se não pudesse prescindir
deles; porquanto, sempre que lhe apraz, deixando-os de lado, ele efetua sua
obra unicamente por seu arbítrio, tão longe está que eles lhe sejam meio de aliviar
alguma dificuldade.
Logo, Deus
faz isso para consolo de nossa fraqueza, para que de modo algum careçamos
de algo que valha, seja para elevar-nos o ânimo à boa esperança, seja para
firmá-lo em segurança. Certamente que isto nos deveria ser mais que suficiente:
que o
Senhor declara ser nosso protetor. Mas, uma vez que nos vemos rodeados de
tantos perigos, de tantos malefícios, de tantos gêneros de inimigos, tal nos é
a flacidez e fragilidade, que poderá acontecer, por vezes, que nos enchamos de
inquietação, ou caiamos em desespero, a menos que, em conformidade com nossa
capacidade, o Senhor nos faça apreender a presença de sua graça.
Por esta
razão, não somente promete que haverá de cuidar de nós pessoalmente, mas ainda
que dispõe de inumeráveis guardiães a quem já determinou para provernos a
segurança, ou, seja, por todo o tempo em que estamos cercados da guarda
e proteção destes, qualquer que seja o perigo que ameace, fomos postos além de
toda
contingência
do mal. De fato confesso que isto se nos converte em erro: que após essa
inconfundível promessa acerca da proteção do Deus único, ainda volvamos o olhar
em derredor, buscando donde nos venha o socorro. Mas, em vista disso,
por sua imensurável clemência e boa vontade, o Senhor
nos quer socorrer deste desvio,
não há por
que negligenciarmos seu tão vultoso benefício.
Exemplo
deste fato temo-lo no serviçal de Eliseu [2Rs 6.17] que, ao ver que o monte
estava cingido em cerco pelo exército dos sírios, não se divisava qualquer meio
de evasão, se transtornava de pavor, como se, quanto a si próprio e a seu senhor,
tudo estivesse findado. Então Eliseu orou a Deus que lhe abrisse os
olhos.
De repente
ele percebe o monte repleto de cavalos e carros de fogo, isto é, de multidão de
anjos, pelos quais haveria de ser guardado, juntamente com o Profeta; firmado por
esta visão recobrou-se e pôde, de ânimo intrépido, desdenhar do inimigo, a cuja
contemplação havia quase expirado.
João
Calvino