Antes,
porém, de começar a tratar mais exaustivamente da natureza do homem, convém
inserir algo a respeito dos anjos; porquanto, visto que, acomodando-se à insofisticada
mentalidade das pessoas simples, Moisés não menciona na história da Criação
outras obras de Deus, senão aquelas que a nossos olhos se ostentam; entretanto,
quando em seguida introduz os anjos na condição de ministros de Deus,
podese facilmente concluir que aquele a quem devotam sua atividade e
misteres é seu Criador. Portanto, embora Moisés, falando em termos
comuns, a partir dos primeiros
rudimentos,
não enumere imediatamente os anjos entre as criaturas de Deus, contudo nada
impede que, lúcida e explicidamente, refiramos a respeito deles o que a
Escritura ensina reiteradamente em outras passagens; porquanto, se ansiamos em conhecer
as obras de Deus, de modo algum se deve omitir tão preclaro e nobre
exemplar.
Acresce que, para a refutação de muitos erros, mui necessária é esta parte da
doutrina.
A
preeminência da natureza angélica de tal modo tem obcecado a mente de muitos,
que chegaram a pensar que se lhes faz agravo, se fossem, por assim dizer, forçados
em sua condição de criaturas a sujeitar-se à autoridade do Deus único. E por
isso chegaram a atribuir-lhes certa divindade.
Surgiu
também Mani, com sua seita, que engendrou para si dois princípios absolutos:
Deus e o Diabo. E a Deus, naturalmente, atribuía a origem das coisas boas, mas
as chamadas naturezas más ele as atribuía, por autor, ao Diabo.
Se desvario como esse nos mantivesse enredilhada a mente, não se poderia dar a
Deus a glória
que ele
merece na criação do mundo. Ora, uma vez que, por assim dizer, nada seja mais
próprio de Deus que a eternidade, e a auvtousi,a [autousíâ], isto é, a
existência própria, aqueles que atribuem isto ao Diabo porventura não
estão, de certo modo, a
adorná-lo
com o título da divindade? Onde, pois, a onipotência de Deus, se ao Diabo se
concede tal poder que, contra a vontade de Deus e a despeito de sua oposição, leve
a bom termo tudo quanto deseja?
Mas o único
fundamento que os maniqueus têm – não ser próprio atribuir-se a um Deus bom a
criação de qualquer coisa má –, isto nem de leve fere a fé ortodoxa, a qual não
admite que no universo inteiro haja alguma natureza má, porquanto nem a
depravação e malignidade, seja do homem, seja do Diabo, ou os pecados que daí
nascem,
provêm da natureza, mas da corrupção da natureza; nem de início há
absolutamente nada que exista em que Deus não haja estampado o selo, tanto de
sua sabedoria, quanto de sua justiça.
Portanto,
para que se vá de encontro a essas cogitações pervertidas, é necessário elevar
a mente mais alto do que nossos olhos possam penetrar. É provável que para este
propósito, onde no Credo Niceno Deus é chamado o Criador de todas as coisas,
que também
se mencionem expressamente as coisas invisíveis. Contudo, nesta questão de
anjos, deve manter-se a medida que a norma da piedade prescreve, para que
não aconteça que, especulando além do que se recomenda, os leitores
vagueiem
longe da
simplicidade da fé. Porque, sendo que o Espírito Santo sempre nos ensina o que
nos convém, e as coisas que são de pouca importância para nossa edificação, ou as omite totalmente, ou as toca brevemente e como que de passagem, é
também
dever nosso
ignorar voluntariamente as coisas que não granjeiam proveito algum.
João
Calvino