Total de visualizações de página

quinta-feira, 24 de maio de 2018

OS ANJOS SÃO CRIATURAS DE DEUS, QUE É DE TUDO O SENHOR


Antes, porém, de começar a tratar mais exaustivamente da natureza do homem, convém inserir algo a respeito dos anjos; porquanto, visto que, acomodando-se à insofisticada mentalidade das pessoas simples, Moisés não menciona na história da Criação outras obras de Deus, senão aquelas que a nossos olhos se ostentam; entretanto, quando em seguida introduz os anjos na condição de ministros de Deus, podese facilmente concluir que aquele a quem devotam sua atividade e misteres é seu Criador. Portanto, embora Moisés, falando em termos comuns, a partir dos primeiros
rudimentos, não enumere imediatamente os anjos entre as criaturas de Deus, contudo nada impede que, lúcida e explicidamente, refiramos a respeito deles o que a Escritura ensina reiteradamente em outras passagens; porquanto, se ansiamos em conhecer as obras de Deus, de modo algum se deve omitir tão preclaro e nobre
exemplar. Acresce que, para a refutação de muitos erros, mui necessária é esta parte da doutrina.
A preeminência da natureza angélica de tal modo tem obcecado a mente de muitos, que chegaram a pensar que se lhes faz agravo, se fossem, por assim dizer, forçados em sua condição de criaturas a sujeitar-se à autoridade do Deus único. E por isso chegaram a atribuir-lhes certa divindade.
Surgiu também Mani, com sua seita, que engendrou para si dois princípios absolutos: Deus e o Diabo. E a Deus, naturalmente, atribuía a origem das coisas boas, mas as chamadas naturezas más ele as atribuía, por autor, ao Diabo. Se desvario como esse nos mantivesse enredilhada a mente, não se poderia dar a Deus a glória
que ele merece na criação do mundo. Ora, uma vez que, por assim dizer, nada seja mais próprio de Deus que a eternidade, e a auvtousi,a [autousíâ], isto é, a existência própria, aqueles que atribuem isto ao Diabo porventura não estão, de certo modo, a
adorná-lo com o título da divindade? Onde, pois, a onipotência de Deus, se ao Diabo se concede tal poder que, contra a vontade de Deus e a despeito de sua oposição, leve a bom termo tudo quanto deseja?
Mas o único fundamento que os maniqueus têm – não ser próprio atribuir-se a um Deus bom a criação de qualquer coisa má –, isto nem de leve fere a fé ortodoxa, a qual não admite que no universo inteiro haja alguma natureza má, porquanto nem a depravação e malignidade, seja do homem, seja do Diabo, ou os pecados que daí
nascem, provêm da natureza, mas da corrupção da natureza; nem de início há absolutamente nada que exista em que Deus não haja estampado o selo, tanto de sua sabedoria, quanto de sua justiça.
Portanto, para que se vá de encontro a essas cogitações pervertidas, é necessário elevar a mente mais alto do que nossos olhos possam penetrar. É provável que para este propósito, onde no Credo Niceno Deus é chamado o Criador de todas as coisas,
que também se mencionem expressamente as coisas invisíveis. Contudo, nesta questão de anjos, deve manter-se a medida que a norma da piedade prescreve, para que não aconteça que, especulando além do que se recomenda, os leitores vagueiem
longe da simplicidade da fé. Porque, sendo que o Espírito Santo sempre nos ensina o que nos convém, e as coisas que são de pouca importância para nossa edificação, ou as omite totalmente, ou as toca brevemente e como que de passagem, é também
dever nosso ignorar voluntariamente as coisas que não granjeiam proveito algum.

João Calvino