O fato de
compendiarem numerosas referências de Irineu, nas quais ele afirma que o
Pai de Cristo é o único e eterno Deus de Israel, ou constitui vergonhosa ignorância,
ou a máxima improbidade. Pois deveriam ter atentado para o fato de que o
santo varão tinha estado a haver-se e a defrontar-se com fanáticos que negavam
que
o Pai de
Cristo fosse aquele Deus que falara outrora por intermédio de Moisés e dos profetas;
ao contrário, ele lhes era não sei que espectro produzido da corrupção do mundo.
Conseqüentemente Irineu se concentra inteiramente nisto: tornar patente que
na Escritura não se proclama outro Deus senão o Pai de Cristo, e que se cogita erroneamente
outro, e daí não é de maravilhar-se se conclui tantas vezes que o Deus de
Israel não era outro senão aquele que é celebrado por Cristo e pelos
apóstolos.
Assim
também agora, quando se tem de resistir a erro diverso, diremos, com verdade: o
Deus que apareceu outrora aos patriarcas não foi outro senão Cristo. Todavia, se
alguém objeta ter sido o Pai, terá resposta imediata: enquanto propugnamos pela
deidade do Filho, de modo nenhum excluímos o Pai.
Se os
leitores derem ouvidos a este parecer de Irineu, cessará toda contenção, visto
que, na verdade, toda lide facilmente se dirime do capítulo sexto do livro III,
onde o piedoso varão insiste neste ponto específico: “Aquele que,
em acepção absoluta e não particularizada, na Escritura é chamado Deus,
esse é verdadeiramente o Deus único, e Cristo, com efeito, é chamado Deus
em acepção absoluta.” Lembremo- nos de que esta foi a base de sua
argumentação, como transparece de todo o desenvolvimento da matéria, e
especialmente do capítulo quarenta e seis do livro II: Pai não é, enigmática e
parabolicamente, chamado quem na verdade não seja Deus. Acresce que, em outro
lugar, Irineu contende por que os profetas e apóstolos, conjuntamente,
postularam como Deus tanto o Filho quanto o Pai. Mas, em seguida, ele define
como Cristo, que de tudo é Senhor, e Rei, e Deus, e Juiz, recebeu poder daquele
que é Deus de todas as coisas, isto é, com respeito a sua sujeição,
visto que
foi
humilhado até a morte de cruz. Entretanto, pouco depois afirma que o Filho é o Artífice
do céu e da terra, que por intermédio de Moisés outorgou a lei e apareceu aos
patriarcas.
Ora, se
alguém vociferar, dizendo que para Irineu o Pai era o único Deus de Israel,
redargüirei que o mesmo escritor ensina claramente que Cristo subsiste com
ele [o Pai] como um e o mesmo, assim também lhe atribui o
vaticínio de Habacuque:
“Do sul
virá Deus” [Hc 3.3]. Ao mesmo aplica-se o que se lê no capítulo nove do livro
IV: “Portanto, o próprio Cristo é com o Pai o Deus dos vivos.” E no capítulo doze
do mesmo livro, interpreta que Abraão crera em Deus porque Cristo é o Autor do
céu e da terra e Deus único.
João
Calvino