Como,
porém, o Diabo foi criado por Deus, lembremo-nos de que esta malignificência que
atribuímos à sua natureza não procede da criação, mas da depravação. Tudo
quanto, pois, tem ele de condenável, sobre si evocou por sua defecção
e queda. Pois visto que a Escritura nos adverte, para que não venhamos, crendo
que
ele recebeu de Deus exatamente o que é agora, a
atribuir ao próprio Deus o que lhe é absolutamente estranho. Por esta
razão, Cristo declara [Jo 8.44] que Satanás, quando profere a mentira, fala do
que é próprio à sua natureza, e apresenta a causa: “porque não
permaneceu na verdade.” De fato, quando estatui que Satanás não
persistiu na verdade, implica em que outrora ele estivera nela; e quando
o faz pai da mentira, lhe exime isto: que não se impute a Deus a falta
da qual ele mesmo foi a causa. Mas, embora essas considerações fossem
expressas de forma sucinta e não com tanta
clareza, no
entanto são mais do que suficientes, para que de toda insinuação cavilosa se
vindique a majestade de Deus. E que proveito há em conhecermos dos seres diabólicos
mais ou para outro fim?
Murmuram
alguns por que a Escritura não expõe, sistemática e distintamente, em muitas
passagens, essa queda e sua causa, modo, tempo e natureza. Mas, uma vez que essas
coisas nada têm a ver conosco, lhe pareceu melhor, ou não dizer absolutamente
nada, ou que fossem tocadas apenas de leve, pois não foi digno do
Espírito
Santo alimentar-nos a curiosidade com histórias fúteis, destituídas de
proveito.
E vemos ter
sido este o propósito do Senhor: nada ensinar em seus sagrados oráculos que não
aprendêssemos para nossa edificação.
Portanto,
para que nós próprios não nos detenhamos em demasia em coisas supérfluas,
no que se refere à natureza dos seres diabólicos estejamos contentes com
resumirmos a matéria assim: na criação original foram anjos de Deus; mas, em
degenerando, perderam-se e se fizeram instrumentos de perdição a outros.
Pois o
que era
proveitoso de se conhecer, claramente se ensina em Pedro e Judas [2Pe 2.4; Jd
6]: “Deus não poupou”, dizem eles, “aos anjos que pecaram e não conservaram sua
origem; ao contrário, abandonaram sua morada.” E Paulo, mencionando os anjos eleitos
[1Tm 5.21], sem dúvida contrasta com eles tacitamente os réprobos.
João
Calvino