Tecer um
catálogo dos erros com os quais a integridade da fé foi outrora posta em xeque
em relação a este capítulo da doutrina, seria excessivamente longo totalmente inútil
e tedioso. E a maior parte dos hereges intentou de tal modo sair a campo no afã de subverter toda a glória de Deus mediante seus crassos
desvarios, que se deram por satisfeitos com alarmar e lançar em confusão os
menos esclarecidos.
De fato, de
uns poucos homens logo borbulharam muitas seitas, as quais, em parte,
fragmentariam a essência de Deus; em parte, confundiriam a distinção que há entre
as pessoas. Entretanto, se mantemos o que foi antes suficientemente
demonstrado da Escritura: que a essência do Deus uno e único é simples e
indivisa, essência, porém, que pertence ao Pai, e ao Filho, e ao
Espírito, por outro lado, que por determinada propriedade o Pai difere do
Filho, e o Filho difere do Espírito, estará fechada a porta não apenas a
Ário e a Sabélio, mas também aos demais vetustos geradores de erros.
Entretanto,
visto que têm surgido em nosso tempo certos desvairados, como Serveto e outros
como ele, que a tudo envolveram de novéis fantasias, faz-se necessário, em
poucas palavras, discutir suas falácias. A Serveto, o termo Trindade
foi a
tal ponto
odioso, pior, abominável, que dizia serem ateus todos quantos ele
denominava de trinitários. Deixo de considerar os termos
insultuosos que inventou para invectivá-los. Esta, com efeito, foi sua
síntese das especulações: Deus fica dividido em três partes quando se diz que
ele subsiste em três pessoas na essência, e que esta Tríade é imaginária,
porquanto se põe em conflito com a unidade de Deus. Enquanto isto, ele foi
de parecer que as chamadas pessoas são apenas certas figurações externas
que, na realidade, não subsistem na essência de Deus, mas nos representam
Deus desta
ou daquela forma, e que, de início, certamente nada havia de distinto em Deus,
uma vez que outrora o Verbo era o mesmo que o Espírito. Contudo, desde que Cristo
surgiu, como Deus procedente de Deus, também dele derivou o
Espírito como
outro Deus.
Mas, embora às vezes ele matize suas fúnebres canções, como quando diz que a
eterna Palavra de Deus era o Espírito de Cristo em Deus e a efulgência de sua
idéia, de igual modo que o Espírito era a sombra da Deidade, entretanto em
seguida
reduz a nada a deidade de um e de outro, asseverando que, segundo a maneira da
dispensação, tanto no Filho quanto no Espírito, há uma parte de Deus, assim
como o mesmo Espírito, substancialmente em nós e também na madeira e na pedra,
é uma porção de Deus. O que ele vocifera sobre a pessoa do Mediador,
examinaremos no devido lugar.
Mas, esta
monstruosa fantasmagoria, de que pessoa outra coisa não é senão a manifestação
visível da glória de Deus, não necessita de refutação extensa. Pois quando João
[1.1] declara que já antes de o mundo ser criado o Verbo; Palavra] era Deus, mui
claramente o distingue de uma simples idéia. Na verdade, se também
então, e desde a extrema eternidade, esse que era Deus, esteve com o Pai, e sua
própria glória foi insigne com o Pai [Jo 17.5], por certo que não pode ser mera
refulgência externa ou figurativa. Ao contrário, seguese necessariamente
que era uma hipóstase que residia no âmago do próprio Deus.
E ainda que
não se faça menção do Espírito, senão na história da criação do mundo, contudo
ali ele não se apresenta como uma sombra, mas antes como o poder essencial
de Deus, uma vez que Moisés registra que aquela massa ainda informe era sustentada
por ele [Gn 1.2]. Portanto, visto que o Espírito eterno sempre existiu em
Deus, então
ele se manifestou enquanto, vivificando-a, susteve ele a matéria
caótica do céu e da terra até que fossem revestidos com beleza e ordem.
Evidentemente, ainda não pode haver então um emblema ou representação de
Deus, como sonha Serveto. Em outro lugar, porém, ele se vê obrigado a
desnudar mais abertamente sua
impiedade, quando
sustenta que Deus decretou para si um Filho visível em sua eterna razão,
desse modo ele se manifestou visível. Ora, se isso é verdadeiro, não se deixa a
Cristo outra divindade exceto até onde, pelo eterno decreto de Deus, foi ele
constituído Filho. Acrescenta-se que essas fantasmagorias que Serveto supõe
em lugar das hipóstases, de tal modo ele as transforma, que não vacila
em anexar a Deus novos acidentes.
Mais do que
tudo, porém, deve-se especialmente execrar isto: que ele indiscriminadamente
mistura com todas as criaturas tanto o Filho de Deus quanto o Espírito.
Ora, afirma
abertamente que na essência de Deus há partes e divisões, das quais cada porção
é Deus. De modo especial, porém, diz que os espíritos dos fiéis são coeternos e
consubstanciais com Deus, visto que, em outro lugar, atribui deidade substancial
não apenas à alma humana, mas ainda às demais coisas criadas.
João
Calvino