Que os
anjos, afinal, são também criaturas suas deve estar fora de discussão, já que
são ministros de Deus, ordenados para executar-lhe as determinações. Suscitar contenda
quanto ao tempo ou à ordem em que foram criados, porventura não é prova mais
de obstinação do que de diligência? Moisés registra que foi concluída a terra e
concluídos os céus, com todo o exército deles [Gn 2.1]. Que vale ansiosamente
indagar em que dia, à parte das estrelas
e dos
planetas, também começaram a existir os demais exércitos celestes mais
recônditos, como os anjos? Para não alongar-me em demasia, lembremo-nos,
neste ponto, com toda sobriedade, de sorte que, em se tratando de coisas
obscuras, não falemos, ou sintamos, ou sequer almejemos saber outra coisa senão
aquilo que nos
é ensinado
na Palavra de Deus. Ademais, impõe-se ainda que no exame da Escritura nos
atenhamos a buscar e meditar continuamente aquelas coisas que dizem
respeito à edificação, nem cedamos à curiosidade, ou à investigação de coisas
inúteis. E
visto que o
Senhor nos quis instruir não em questões frívolas, mas na sólida piedade, no
temor de seu nome, na verdadeira confiança, nos deveres da santidade,
contentemo-nos com este conhecimento.
Portanto,
se visamos ao reto saber, devemos dar de mão a essa – coisas vãs; fatuidades] que, à parte da Palavra de
Deus e por indivíduos ociosos, são ensinadas acerca da natureza, das ordens, do
elevado número de anjos. Sei que essas coisas são mais avidamente
preferidas por muitos, e para eles são de maior prazer do que aquelas que
lhes são postas para o uso de cada dia. Mas,
se o fato
de sermos discípulos de Cristo não nos envergonha, que também não nos envergonhe
seguirmos esta norma que ele próprio prescreveu. Assim sucederá que, contentes
com sua docência, não só nos abstenhamos dessas especulações
extremamente fúteis de que ele nos retrai, mas até as aborreçamos.
Ninguém
negará que esse Dionísio, não importa quem ele tenha sido, discutira com
sutileza e argúcia sobre muitas coisas em sua obra A Hierarquia
Celeste. Se no entanto alguém a examina mais detidamente,
verificará que na parte absolutamente maior não passa de mero palavreado. Ao
teólogo, porém, o propósito não é deleitar os ouvidos com argumentação loquaz,
mas firmar as consciências, ensinando o verdadeiro, o certo, o proveitoso. Se
lês tal livro, pensas que um homem caído do céu está mencionando não coisas que
aprendeu, mas o que viu com os olhos.
Paulo,
entretanto, que fora arrebatado além do terceiro céu, não só se absteve de fazer
tais referências, mas, ao contrário, até deu testemunho de que não é lícito ao homem
contar os segredos que vira. Portanto, uma vez descartado esse frívolo saber, consideremos
à luz do simples ensino da Escritura o que o Senhor quis que o
soubéssemos
acerca de seus anjos.
João
Calvino