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quarta-feira, 18 de abril de 2018

Improcedência do culto de Dulia à luz das Escrituras


Postas de parte as sutilezas, examinemos a coisa em si. Paulo, quando traz à lembrança aos gálatas o que foram eles antes de ter sido iluminados no conhecimento de Deus, diz que haviam exibido dulia para com aqueles que por natureza não eram deuses [Gl 4.8]. Portanto, uma vez que não a denomina de latria, porventura a
superstição lhes seria escusável? Certamente não a condena menos por chamá-la dulia do que se a denominasse de latria.55
E quando Cristo repele a investida de Satanás com este escudo: “Está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás” [Mt 4.10], não entrava literalmente a questão latria, porque Satanás não requeria senão prosku,nhsin [Pr(sKýn@s!n – prostrar-se de joelhos em reverência]. De igual modo, quando João é repreendido pelo anjo por haver-
se prostrado de joelhos diante dele [Ap 19.10; 22.8, 9], não devemos entender que João fosse tão desprovido de senso que quisesse transferir ao anjo a honra devida só a Deus. Mas, porque não pode ser de outra maneira, para que a deferência que é associada à religião deixe de ter o sabor de algo divino, não pode ele proskunei/n
[Pr(sKyn\'n] ao anjo sem subtrair a glória de Deus.
É verdade que lemos não raras vezes que criaturas humanas foram adoradas. Mas essa foi, por assim dizer, uma honra civil. Outra conotação, porém, tem a religião, que tão logo se associe com o culto da criatura traz consigo a profanação da honra divina. Isso mesmo se pode ver no caso de Cornélio [At 10.25], pois ele não havia avançado tão pouco na piedade que não tributasse a Deus a reverência suprema.
Portanto, ao prostrar-se diante de Pedro, evidentemente não o faz com o propósito de adorá-lo no lugar de Deus. Pedro, no entanto, o proíbe terminantemente de fazê-lo. Por quê, senão pelo fato de que os homens nunca fazem distinção tão precisa entre o culto de Deus e das criaturas, que não transfiram promiscuamente à criatura
o que é próprio de Deus?
Portanto, se queremos ter um só e único Deus, lembremo-nos de que, na verdade, não se deve subtrair de sua glória nem sequer uma partícula, senão que deve conservar para ele o que é seu por direito. E assim Zacarias, quando discursa a respeito da restauração da Igreja [Zc 14.9], proclama eloqüentemente não apenas que Deus haverá de ser um só, mas ainda que um só lhe haverá de ser o nome, isto é, para que ele não tenha algo em comum com os ídolos.
Que culto Deus realmente requer se verá em seu devido lugar, em outra parte.
Ora, mediante sua lei, quis ele prescrever aos homens o que é justo e reto, e dessa forma que eles sejam restringidos por uma norma precisa, para que a ninguém se permita forjar qualquer expressão cultual. Todavia, visto que não convém onerar os leitores com a inclusão simultânea de muitos temas, ainda não vou abordar esse
ponto. É bastante ter isto em mente: não se deve isentar de sacrilégio quaisquer funções religiosas que são transferidas a outrem, e não ao Deus único. Na verdade, desde o princípio a superstição atribuiu honras divinas, seja ao sol e aos demais
astros, seja aos ídolos; então, seguiu-se esta ambição: adornando os mortais com os despojos de Deus, ousou ela profanar tudo quanto havia de sagrado, e ainda que se mantenha esse princípio, adorar ao Nome supremo, entretanto veio a tornar-se costume
oferecerem-se sacrifícios, indiscriminadamente, às divindades tutelares e às deidades inferiores, ou aos heróis finados.
Tanta é a predisposição para a incidência neste erro, a saber, partilhar-se com numerosa turba o que Deus reivindica rigorosa e exclusivamente para si!
                                                                           
João Calvino