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sábado, 30 de junho de 2018

A condicionalidade dos fatos na perspectiva da Soberana Providência de Deus


Tampouco a história sagrada mostra haverem sido anulados os decretos de Deus, quando narra haver ele perdoado aos ninivitas a destruição que já fora proclamada [Jn 3.10], e a Ezequias haver prolongado a vida, após haver sido anunciada sua morte [Is 38.5]. Aqueles que pensam assim se equivocam nestas predições, as quais,
ainda que afirmem em termos absolutos, não obstante à luz do próprio desfecho se percebe que contêm em si tácita condição. Ora, por que o Senhor enviara Jonas aos ninivitas para que lhes predissesse a ruína da cidade? Por que, através de Isaías, anunciava a Ezequias a morte? Pois ele podia destruir tanto aqueles quanto este, sem anúncio de destruição. Portanto, teve em mira outra coisa, a saber: que, premunidos de sua morte, de longe a vissem chegando. Na verdade, não quis que perecessem; ao contrário, arrependidos, para que não perecessem. Portanto, o fato de Jonas vaticinar que após quarenta dias Nínive haveria de ser arrasada, ele o faz para que não fosse arrasada! A razão de a Ezequias cortar-se a esperança de uma vida mais longa é para que ele lograsse uma vida mais longa. Quem não percebe que, mediante ameaças desta ordem, o Senhor queria despertar ao arrependimento àqueles a quem infundia medo, para que escapassem ao juízo de que, por seus pecados, eram merecedores?
Se tal coisa procede, a natureza das coisas nos conduz a isto: que na ameaça inqualificada subentendemos tácita condição; o que, aliás, se confirma à luz de exemplos semelhantes. Repreendendo ao rei Abimeleque, porque havia tirado de Abraão a esposa, o Senhor faz uso destas palavras: “Eis que morrerás por causa da mulher que tomaste, pois ela tem marido” [Gn 20.3]. Entretanto, depois que ele se desculpou, o Senhor fala deste modo: “Restitui a esposa ao marido, pois é profeta, e ele orará por ti para que vivas. Do contrário, sabe que certamente morrerás tu e tudo que tens” [Gn 20.7]. Vês como na primeira acariação lhe acicata mais incisivamente o espírito, para que o demovesse a restituir o que havia tomado; na outra, porém, exibe mais claramente seu propósito.
Uma vez que o sentido de outras passagens é semelhante, não há razão para deduzires delas que se haja anulado alguma coisa do desígnio prévio do Senhor, pelo fato de haver revogado o que anteriormente promulgara. Pois o Senhor aplaina o caminho para sua eterna determinação quando, anunciando o castigo, exorta ao arrependimento àqueles a quem quer poupar, antes que algo varie em sua vontade, e certamente não em sua palavra, exceto que não exprime, sílaba a sílaba, o que entretanto é fácil de entender. Se realmente deva permanecer verdadeira esta afirmação de Isaías: “O Senhor dos Exércitos o deliberou, e quem o poderá anular? Sua
mão está estendida, e quem a desviará?” [Is 14.27].


João Calvino