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quinta-feira, 28 de junho de 2018

Relevância das causas Intermédias


Entretanto, enquanto isso o varão piedoso não fechará os olhos às causas inferiores. Pois, só porque os julgará serventuários da bondade divina, não significa que haverá por isso de preterir àqueles de quem houver de ser tocado por um benefício, como se não houvessem de ser merecedores de nenhuma gratidão por sua humanidade; ao contrário, se sentirá bem perto de seu coração, e de bom grado lhe confessará a obrigação, e deligenciará por manifestar-lhe o agradecimento, na medida da possibilidade e deparada a oportunidade. Enfim, nos benefícios recebidos reverenciará e louvará a Deus como seu principal autor, porém honrará aos homens como seus ministros e, como é de fato, compreenderá haver sido ligado pela vontade de Deus àqueles por cuja mão ele quis ser-lhes benévolo. Se, ou por negligência, ou por imprudência, houver experimentado alguma perda, terá para si que isso se deu realmente em virtude da vontade do Senhor; contudo, também a si próprio imputará a culpa. Se porventura alguém for acometido de uma enfermidade, a quem tratou com displicência, quando lhe devera ter a obrigação de cuidar, ainda que não ignorará haver chegado a um termo além do qual não poderia passar, contudo daí não relevará seu pecado; mas, porque não se desincumbira fielmente de seu dever para com ele, aceitará isso exatamente como se perecesse por culpa de sua negligência. Muito menos, onde hajam intervindo aleivosia e maldade premeditada na prática de um homicídio ou de um furto, as justificará sob pretexto da providência divina; ao contrário, contemplará distintamente no mesmo ato doloso a justiça de Deus e a iniqüidade do homem, como se evidencia uma e outra claramente. Mui particularmente, porém, em relação a eventos futuros, o homem piedoso levará em conta causas secundárias desta espécie. Ora, isso terá entre as bênçãos do Senhor, se não houver de carecer dos recursos humanos de que se utilize para sua incolumidade. Daí também não cessará de tomar conselhos, nem haverá de ser lerdo em implorar a assistência daqueles a quem perceberá disporem de meios donde haja de ser ajudado. Ao contrário, considerando que à mão se lhe oferecem da parte do Senhor todas e quaisquer criaturas que lhe podem prover algo, as porá para o uso como instrumentos legítimos da providência divina. E uma vez que está incerto quanto a que resultado tenham os afazeres que empreende, exceto que em todas as coisas sabe que o Senhor haverá de velar por seu bem, aspirará com diligência, quanto pode alcançar pela inteligência e pelo entendimento, àquilo que considere ser para sua conveniência. Nem contudo, ao tomar deliberações, se deixará levar pelo próprio senso; antes, se confiará e se submeterá à sabedoria de Deus, para que seja por sua orientação dirigido ao alvo certo. Além disso, tampouco temos de pôr nossa confiança no auxílio e nos meios terrenos, de tal maneira que quando os possuímos nos sintamos plenamente tranqüilos, e quando nos faltam desfaleçamos, como se já não tivéssemos remédio algum.124 Pois terá sempre a mente fixa unicamente na providência de Deus, nem permitirá que de sua firme contemplação seja distraído pela consideração das coisas presentes. Assim é que Joabe, ainda que reconheça que o resultado da batalha está no arbítrio e mão de Deus, contudo não se entrega à inércia, mas executa diligentemente o que lhe é da alçada; deixa, porém, ao Senhor a direção do resultado: “Erguernos-emos firmes”, diz ele, “por nosso povo e pelas cidades de nosso Deus; o Senhor, porém, faça o que é bom a seus olhos” [2Sm 10.12]. Este mesmo conhecimento nos impelirá, despojados de temeridade e perversa presunção, à contínua invocação de Deus; então também de boa esperança nos susterá o ânimo, para que não hesitemos em desprezar, resoluta e corajosamente, os perigos que nos cercam.

João Calvino