Total de visualizações de página

domingo, 17 de junho de 2018

A PROVIDÊNCIA DIVINA NÃO NOS JUSTIFICA A INIQÜIDADE


Os mesmos indivíduos atribuem os eventos pretéritos à manifesta providência de Deus, de forma errônea e inconsiderada. Ora, visto que dela dependem todas as coisas que acontecem, logo, dizem eles, nem roubos, nem adultérios, nem homicídios se perpetram sem que a vontade de Deus intervenha. Portanto, insistem, por que será punido o ladrão, que despojou àquele a quem o Senhor quis castigar com a
pobreza? Por que será punido o homicida, que matou àquele a quem o Senhor havia findado a vida? Se todos estão assim servindo à vontade de Deus, por que haverão de ser punidos? Eu, porém, em contrário, nego que estejam eles servindo à vontade de Deus. Pois não diremos que presta serviço a Deus, conforme sua ordem, aquele que é levado por seu mau ânimo, quando obedece apenas ao próprio desejo maligno.
Obedece a Deus aquele que, plenamente instruído acerca de sua vontade, porfia por fazer aquilo que ele o chamou para fazer. Mas, donde somos nós plenamente instruídos, senão de sua Palavra? Portanto, em nosso curso de ação, devemos ter em mira esta vontade de Deus que ele declara em sua Palavra. Deus quer de nós unicamente isto: obediência ao que ele preceitua. Se intentamos algo contra seu preceito, isso não é obediência; pelo contrário, é contumácia e transgressão.
Mas, replicarão, a não ser que ele o quisesse, não o haveríamos de fazer. Concordo. Entretanto, porventura fazemos as coisas más com este propósito, ou, seja, que lhe prestemos obediência? Com efeito, de maneira alguma Deus não no-las ordena; antes, pelo contrário, a elas nos arremetemos, nem mesmo cogitando se ele o queira, mas de nosso desejo incontido, a fremir tão desenfreadamente, que de
intento deliberado lutamos contra ele. E, por essa razão, ao fazermos o mal, servimos a sua justa ordenação, porquanto, em decorrência da imensa grandeza de sua sabedoria, ele sabe, bem e convenientemente, fazer uso dos instrumentos maus para
efetuar o bem.
Consideremos, pois, quão inadequada é sua argumentação: querem que os crimes de seus autores sejam impunes, porquanto não são cometidos senão pela administração de Deus. Eu concedo mais: os ladrões e os homicidas, e os demais malfeitores, são instrumentos da divina providência, dos quais o próprio Senhor se utiliza para executar os juízos que ele mesmo determinou. Nego, no entanto, que daí se
deva permitir-lhes qualquer escusa por seus maus feitos.
E então? Porventura enredilharão Deus consigo na mesma iniqüidade, ou com a justiça dele haverão de acobertar sua depravação? Não podem fazer nem uma, nem outra coisa. Para que não justifiquem a si próprios, sua própria consciência os recrimina; para que não acusem a Deus, percebem em si mesmos todo o mal, e nele nada senão o legítimo uso da maldade deles.
Mas, de fato, insistirão que Deus opera através deles! E, indago eu, donde provém o mal cheiro em um cadáver que, pelo calor do sol, não só se fez putrefato, mas até já entrou em decomposição? Todos vêem que isso é provocado pelos raios do sol; contudo, ninguém por isso diz que eles cheiram mal. Daí, como no homem mau residem a matéria e a culpa do mal, que razão há para que se conclua que Deus contrai alguma mácula se, a seu arbítrio, ele faz uso de sua atuação?
Portanto, fora com essa petulância canina, a qual na realidade pode ladrar, à distância, contra a justiça de Deus, não, porém, tocá-la!


João Calvino