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domingo, 10 de junho de 2018

A Providência, Corolário Lógico da Criação, Razão por que não se Separam


Com efeito, tomar Deus como um Criador momentâneo, que haja realizado sua obra de uma vez por todas, seria fútil e de nenhum proveito. E nisto, principalmente, convém que sejamos diferentes dos homens profanos: que a presença do poder divino nos fascine, não menos no estado contínuo do mundo do que em sua origem
primeira. Pois, ainda que até mesmo as mentes dos ímpios sejam, só ante a visão da terra e do céu, compelidas a elevar-se ao Criador, contudo a fé tem sua maneira peculiar pela qual atribui a Deus o pleno louvor da criação. Ao que é pertinente essa afirmação do apóstolo que já citamos antes [Hb 11.3]: “Somente pela fé entendemos que o mundo foi produzido pela Palavra de Deus”, porquanto, se não chegamos até sua providência, por mais que pareçamos não só compreender com a mente, mas até confessar com a língua, ainda não aprendemos corretamente o que isto significa: “Deus é Criador.”
O senso carnal, quando uma vez tenha se confrontado com o poder de Deus na própria criação, aí se detém, e quando avança bem mais, nada além pondera e contempla que a sabedoria, o poder e a bondade do autor em criar tal obra, coisas que se evidenciam por si mesmas e se impõem até aos que não querem; além disso, contempla certa operação geral em conservá-la e governá-la, de que procede o poder movimentador. Finalmente, pensa que a energia divinamente infundida de início basta para suster a todas as coisas.
A fé, entretanto, deve penetrar mais fundo, isto é, que imediatamente conclua ser aquele sobre quem aprendeu ser o Criador de todas as coisas também o perpétuo Governador e Preservador de tudo. Não significa apenas acionar, mediante determinado movimento universal, tanto a máquina do orbe, quanto a cada uma de suas partes, como também a sustentar, nutrir, assistir, com determinada providência singular, a cada uma dessas coisas que criou até o mais insignificante pardal [Mt 10.29].
Assim Davi [Sl 33.6], após prefaciar em termos breves que o mundo foi criado por Deus, desce imediatamente ao curso ininterrupto da providência: “Pela Palavra do Senhor foram firmados os céus e pelo sopro de sua boca, todo o poder deles.” Logo em seguida [v. 13], acrescenta: “O Senhor lançou o olhar sobre os filhos dos homens”,
e as demais coisas que entretece na mesma sentença. Ora, ainda que nem todos raciocinem tão doutamente – uma vez que não seria crível Deus ter sob seus cuidados as coisas humanas, a não ser que ele fosse o Criador do universo, e ninguém creria seriamente ter o mundo sido formado por Deus sem se convencer de que ele tem cuidado de suas obras – Davi, não sem causa, nos transporta, na mais excelente ordem, de um ao outro desses dois polos.
De modo geral, os filósofos não só ensinam que certamente todas as porções do universo são vitalizadas, através da secreta inspiração de Deus, mas também as mentes humanas o concebem. Enquanto isso, não chegam até onde Davi é transportado e enaltece consigo a todos os piedosos, dizendo: “Todos os seres olham para ti, para que, a seu tempo, lhes dês alimento; dando-o tu, ajuntam; abrindo tu a mão, fartam-se de bens; tão logo desvias o rosto, ficam perturbados; quando lhes retiras o alento, perecem e voltam à terra; se de novo envias o Espírito, são criados e renovas a face da terra” [Sl 104.27-30]. Com efeito, ainda que subscrevam a afirmação de
Paulo [At 17.28], de que em Deus existimos, nos movemos e vivemos, entretanto longe estão daquele sério senso de sua graça que ele, Paulo, recomenda, porquanto nem de leve provam o especial cuidado de Deus, com o qual manifesta o paterno favor com que nos trata.

João Calvino