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domingo, 10 de junho de 2018

Definição e propriedades da Alma


Seria estulto buscar definição de alma da parte dos filósofos, dos quais quase nenhum, excetuando Platão, tem plenamente afirmado ser sua substância imortal.
Certamente que também outros socráticos a abordam, todavia em moldes que ninguém claramente ensine de que ele próprio não foi persuadido.
Por isso é que Platão tem opinião mais correta, já que contempla a imagem de Deus na alma. Outros lhe fixam os poderes e faculdades à presente vida a tal ponto que nada deixam fora do corpo.
Com efeito, ensinamos antes, da Escritura, que a alma é uma substância incorpórea. Deve-se acrescentar agora que, embora não se limite propriamente a um lugar, contudo, infundida no corpo, aí habita como em uma residência, não apenas para que anime todas as suas partes, e torne aptos os órgãos e dispostos às ações,
mas ainda que mantenha o primado na regência da vida da criatura humana, não só no que tange aos deveres do viver terreno, como também que, ao mesmo tempo, o incite a honrar a Deus. Ainda que, na atual corrupção do homem, este último aspecto não se perceba claramente, entretanto lhe permanecem resquícios gravados nos
próprios desregramentos. Pois de onde, senão do senso de decoro, têm os homens tão ingente cuidado com a reputação pessoal? Mas, donde o senso de decoro, senão do respeito para com o que é honroso? Disto o princípio e causa é compreender que nasceram para cultivar a retidão, no que está incluída a semente da religião.
Mas, assim como foi o homem, indiscutivelmente, criado para a meditação da vida celeste, assim também é certo que foi impressa em sua alma o conhecimento dela. E de fato o homem carecia da principal função do entendimento, se ignota lhe pairasse sua própria felicidade, cuja perfeição é estar unido com Deus. Donde também
a principal ação da alma é que aspire a isto; e, conseqüentemente, quanto mais alguém diligencia por aproximar-se de Deus, tanto mais se comprova ser ele dotado de razão.
Quanto aos que dizem que há várias almas no homem, como a sensitiva e a racional, ainda que pareça verossímil e provável o que dizem, visto que suas razões não são suficientes nem sólidas, não admiremos sua opinião, para não andarmos preocupados com coisas frívolas e vãs.96 Grande discrepância dizem eles existir
entre os impulsos orgânicos e a parte racional da alma. Como se também a própria razão não tenha dissídios consigo própria e suas decisões não conflitem umas com as outras, não menos que exércitos inimigos! Como, porém, este distúrbio procede da depravação da própria natureza, conclui-se daí, erroneamente, visto que suas faculdades não se harmonizam entre si na proporção que parece apropriada, que as almas são duas.
Quanto, porém, às próprias faculdades da alma, relego aos filósofos que dissertem com mais sutileza. Para que a piedade seja edificada, nos será suficiente uma definição singela. Confesso que as coisas que ensinam são realmente verazes, não apenas agradáveis de se conhecer, como também são proveitosas e por eles habilidosamente coligidas, nem tampouco proíbo de seu estudo aqueles que estão desejosos de aprender.
Admito, portanto, em primeiro lugar, que há cinco sentidos, os quais, entretanto, mais agrada a Platão designá-los de órgãos, mediante os quais todas as coisas postas diante de nós se instilam no senso comum, como em uma espécie de receptáculo.
Segue-se a imaginação, que discrimina o que foi apreendido pelo senso comum; então, a razão na qual está o juízo universal; por fim, o entendimento que, em consideração firme e pausada, contempla o que, em discorrendo, a razão costuma revolver. De igual modo, admito que ao entendimento, à razão e à imaginação, as três faculdades cognitivas da alma, correspondem também três faculdades apetitivas: a vontade, cujas funções são procurar a execução do que o entendimento e a razão proponham; a cólera, que se apropria do que é impelido pela razão e pela
imaginação; a concupiscência, que apreende o insinuado pela imaginação e pela sensibilidade. Estas coisas, ainda que sejam verdadeiras, ou pelo menos prováveis, uma vez que, entretanto, me arreceio que nos envolvam mais em sua obscuridade do que ajudem, sou de parecer que devem ser deixadas de parte.
Não renego muito se a alguém apraz distribuir as faculdades da alma de outra maneira, de sorte que uma se chame apetitiva, a qual, embora a carecer da razão, no entanto, se é dirigida de outra parte, obedece à razão; a outra diz-se intelectiva, que é por si mesma participante da razão. Nem buscaria refutar que há três princípios de ação: a sensibilidade, o intelecto, o apetite.
Nós, porém, escolhamos antes uma divisão posta ao alcance de todos, que na verdade não se pode buscar nos filósofos. Ora, eles, quando querem falar com extrema simplicidade, dividem a alma em apetite e intelecto, mas a cada um destes dois o duplicam. Este, o intelecto, por vezes dizem ser contemplativo, o qual, satisfeito
apenas com a cognição, não tem nenhum impulso de ação, coisa que Cícero pensa designar-se pelo termo engenho; por vezes dizem ser prático, o qual, pela apreensão do bem ou do mal, move a vontade diversamente. Nesta classe inclui-se o conhecimento
do bom e justo viver.
Quanto ao apetite, eles o dividem em vontade e concupiscência, e é certamente – vontade quantas vezes o apetite, a que chamam – impulso, desejo] obedece à razão; – paixão, concupiscência]; porém,
se torna, quando alijado o jugo da razão, o apetite se arroja à intemperança. Portanto, sempre imaginam no homem uma razão pela qual possa ele governar de forma reta.


João Calvino