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domingo, 17 de junho de 2018

SENTIDO E ALCANCE DA PROVIDÊNCIA


Na verdade, como é a mente propensa a vãs sutilezas, dificilmente pode acontecer que não se enredilhem em laços perplexivos quantos não sustêm probo e reto uso desta doutrina. E assim convirá abordar sucintamente aqui a que fim a Escritura ensina que todas as coisas são divinamente ordenadas. E, em primeiro lugar, certamente deve notar-se que é preciso considerar a providência de Deus tanto em função do tempo futuro quanto do passado. Em segundo lugar, que ela a tal ponto é a moderatriz de todas as coisas, que ora opera por meios interpostos, ora sem meios, ora contra todos os meios. Em terceiro lugar, que ela aponta para o fato de que Deus mostra tomar sobre si o cuidado de todo o gênero humano, mas principalmente que vela em governar a Igreja, a qual tem por digna da mais estrita atenção.
Agora é preciso acrescentar também isto: embora freqüentemente reluza em todo o curso da providência ou o paterno favor e a beneficência de Deus, ou a severidade de seu juízo, entretanto às vezes as causas dessas coisas que acontecem são ocultas, de sorte que sutilmente se insinue o pensamento de que as coisas humanas
volvem e giram ao cego impulso da sorte, ou a carne nos contradiz solicitamente, como se Deus, atirando os homens como bolas, se entregasse a um jogo!
Realmente é verdade que, se estivéssemos preparados para aprender com espírito sereno e acomodado, afinal se faria patente, ante o próprio resultado, que a Deus assiste a melhor razão de seu propósito, seja que à paciência eduque os seus, seja que lhes corrija os afetos depravados e dome a lascívia, seja que os quebrante à renúncia, seja que os desperte da inércia; ou, em contrário, que humilhe os orgulhosos, que estraçalhe a astúcia dos ímpios, que lhes dissipe as torvas maquinações.
No entanto, por mais que as causas nos sejam ocultas e fujam, deve-se ter por certo que estão ocultas nele, e daí ser melhor exclamar-se com Davi: “Muitas são, ó Senhor meu Deus, as maravilhas que tens operado para conosco e teus pensamentos não se podem contar diante de ti; se eu os quisesse anunciar, e deles falar, são mais
do que se podem contar” [Sl 40.5]. Ora, ainda que em nossas tribulações devemos sempre ser despertados dos pecados, para que a própria punição nos induza ao arrependimento, contudo sabemos que Cristo atribui a seu Pai, quando castiga os ho mens, uma autoridade muito maior que a faculdade de castigar a cada um conforme
ao que o mesmo mereceu. Pois, em relação ao cego de nascença, diz: “Nem este pecou, nem seus pais, mas isto é para que nele se manifeste a glória de Deus” [Jo 9.3]. Aqui, pois, quando a calamidade antecede ao próprio nascimento, nosso sentimento natural vocifera como se Deus, falto de clemência, assim afligisse aos que
não o merecem. Cristo, entretanto, dá testemunho de que neste episódio fulge a glória de seu Pai, desde que tenhamos olhos puros.
Impõe-se, porém, comedimento, para que não obriguemos Deus a prestar-nos conta; ao contrário, de tal modo reverenciemos seus juízos secretos, que sua mui justa vontade nos seja a causa de todas as coisas. Quando nuvens densas invadem o céu e se desencadeia violenta tempestade, porque também aos olhos se depara sombrio
entenebrecimento, e o trovão fere os ouvidos, e todos os sentidos de pavor se entorpecem, é como se todas as coisas se confundissem e se misturassem. Enquanto isso, no céu acima permanece sempre a mesma quietude e serenidade. Daí dever-se estatuir que, enquanto as coisas turbulentas do mundo nos privam do senso judicatório,
Deus, pela pura luz de sua justiça e sabedoria, estabelecida em ordem a mais perfeita, governa e dirige ao reto propósito a estes próprios movimentos. E, na verdade, neste aspecto é monstruoso o desvario de muitos que ousam, com petulância maior do que acerca de atos de homens mortais, chamar a seu escrutínio as obras de Deus e esquadrinhar seus desígnios secretos, até mesmo exprimir apressado julgamento sobre coisas desconhecidas. Pois, há algo mais fora de propósito que conduzir-se com modéstia em relação a nossos semelhantes, preferindo suspender o juízo a ser taxados de temerários, enquanto tão audazmente se mofa dos juízos secretos de Deus, os quais devemos admirar e reverenciar profundamente?

João Calvino