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domingo, 17 de junho de 2018

A Doutrina da Providência não é mera crença no Destino ou Fado, na Sorte ou Acaso


Aqueles que desejam suscitar ódio em relação a esta doutrina, a caluniam de ser o dogma do destino dos estóicos, o que também foi, certa vez, lançado em rosto a Agostinho. Embora litiguemos a contragosto acerca de palavras, todavia não aceitamos o termo destino, quer por ser do gênero daqueles de cujas profanas novidades Paulo ensina a nos guardarmos [1Tm 6.20], ou porque, por sua odiosidade, esses homens tentam estigmatizar a verdade de Deus. Entretanto, falsa e maldosamente, essa mesma doutrina nos é imputada como sendo nossa. Ora, não engendramos com os estóicos, em função da perene vinculação e da determinada seriação implícita das causas, uma necessidade que seja contida na natureza; ao contrário, de tudo constituímos a Deus árbitro e moderador, o qual, por sua sabedoria, decretou desde a extrema eternidade o que haveria de fazer, e agora, por seu poder, executa o que decretou. Daí, afirmamos que não só o céu e a terra, e as criaturas inanimadas, são de tal modo governados por sua providência, mas até os desígnios e intenções dos homens, são por ela retilineamente conduzidos à meta destinada.
Pois dirás: Porventura nada acontece por acaso? Nada ocorre contingentemente?
Respondo com o que foi dito por Basílio, o Grande, com muita verdade, que sorte e acaso são termos dos pagãos de cujo significado não devem ocupar-se as mentes dos piedosos. Afinal de contas, se todo bom êxito é bênção de Deus, toda calamidade e adversidade são sua maldição, já não se deixa nenhum lugar à sorte ou ao acaso nas coisas humanas.
E deve impressionar-nos também essa observação de Agostinho: “Nos livros Contra os Acadêmicos”, diz ele, “não me agrada tantas vezes ter mencionado a Sorte, visto que não desejava que se entendesse por esse termo alguma deusa, mas apenas a eventuação fortuita das coisas, em sua expressão externa, seja boa, seja má. Desse termo [fortûn&] procedem também esses vocábulos que nenhuma religiosidade proíbe pronunciar: forte [talvez], forsan [quem sabe], forsitan [provavelmente], fortasse [porventura], fortuito [por acaso], o que se deve, no entanto, atribuir tudo à divina providência. Nem guardei silêncio sobre isso, pois afirmei: ‘Com
efeito, porventura o que vulgarmente se designa Sorte é também governado por ordenação oculta, e nas coisas nada mais chamamos Acaso senão aquilo do qual a razão e causa são desconhecidas.’ De fato eu falei isso. Arrependo-me, porém, de haver assim usado aqui o termo Sorte, quando vejo que os homens têm o péssimo costume de dizer: ‘Isto quis a sorte’, onde se deve dizer: ‘Isto quis Deus’.”112 Em suma, Agostinho ensina reiteradamente que, se algo é deixado à sorte, o mundo revolve ao léu. E visto que ele estabelece em outro lugar que tudo se processa em parte pelo livre-arbítrio do homem, em parte pela providência de Deus, contudo pouco depois deixa bastante claro que os homens estão sujeitos a esta, e são por ela governados, uma vez ser sustentado o princípio de que nada há mais absurdo do que alguma coisa acontecer sem que Deus o ordene, pois doutra sorte aconteceria às cegas. Razão pela qual até exclui a contingência que depende do arbítrio dos homens, asseverando, ainda mais claramente logo depois, que não se deve buscar qual é a causa da vontade de Deus. Quantas vezes, porém, é por ele feita menção do termo permissão, como se deva entender que isso se evidenciará perfeitamente de uma passagem onde ele prova que a vontade de Deus é a suprema e primeira
causa de todas as coisas, já que nada acontece a não ser por sua determinação ou permissão. Certamente, ele não imagina Deus a repousar em ociosa torre de observação, enquanto se dispõe a permitir algo, quando intervém uma, por assim dizer, vontade presente, de qualquer modo não se poderia declarar como causa.

João Calvino